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São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2003

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MARCELO COELHO

Adorno e sua lista de proibições

Comemorou-se na semana passada o centenário de nascimento de Theodor Adorno (1903-1969). Tentei escapar desse tema. Adorno tende a amedrontar até mesmo os seus admiradores. É que seus textos são em geral muito difíceis.
Como leitor, é comum que eu me sinta desnorteado. Às vezes me lembro mais ou menos bem de uma frase, de uma idéia, desta ou daquela passagem de um livro de Adorno. Mas, quando vou conferir o trecho, para ver se faço a citação correta, abro o livro e não consigo encontrar mais o que estava procurando. O trecho parece ter sumido, parece ter sido engolido pelo torvelinho dialético do raciocínio. Outros parágrafos, outras frases vêm à tona: não mais as que eu estava procurando.
Outra coisa intimida bastante neste centenário. O autor parece ter-se tornado uma espécie de superego do intelectual de esquerda. Associa-se a Adorno não o que possa haver de liberador no seu pensamento, mas uma lista de proibições. Jazz não pode, MPB é barbárie, literatura policial é desprezível, televisão dá câncer. Ai de quem gostar dessas coisas! É preciso reconhecer a importância das críticas de Adorno à indústria cultural, claro, mas não dá para seguir à risca os seus padrões de julgamento. O mais comum é dizer que ele tinha razão, mas que era excessivamente radical...
Lembro-me de um retrato de Adorno, já no fim da vida, careca, rechonchudo, com os olhos muito arregalados. Foi reproduzido na contracapa de não sei que livro dele. A foto exerce um efeito paralisante, ameaçador; é uma espécie de Medusa do pensamento crítico, a que se contrapõe outra imagem dele, também muito reproduzida: é a de seu rosto de perfil, como uma máscara, um selo, uma moeda. O autor, congelado pelo ar das alturas, com as pálpebras pesadas de enfado e desalento, ignora nossas inquietações.
Não quero sugerir que Adorno tenha perdido a atualidade. Mesmo suas análises mais "antipáticas" sobre a indústria cultural são atualíssimas. O que mudou, sem dúvida, foram as perferências, as disposições, o grau de tolerância, o tipo de formação cultural dos próprios intelectuais de esquerda, das próprias pessoas que o lêem.
São poucos os que aceitam integralmente suas críticas ao cinema hollyowoodiano, sua condenação da música popular, sua defesa intransigente da cultura erudita. Nesses três pontos, todo mundo respeita Adorno, mas prefere outro tipo de enfoque.
No que diz respeito ao cinema de Hollywood, por exemplo, é preciso levar em conta que mesmo um filme "blockbuster" possibilita diferentes interpretações, e não se resume a uma mensagem ideológica única. A ideologia de Hollywood não é necessariamente o que acaba sendo absorvido pelo espectador. A mensagem oficial vem acompanhada de outras mensagens, "não-oficiais", por assim dizer, que são justamente o que torna o filme mais atraente para o público. Mesmo no cinema dos anos 50, em que triunfavam o moralismo sexual, a apologia do casamento e dos bons costumes, havia um "subtexto" bem menos conservador. Para atingir os espectadores, os filmes de Hollywood acabam se impregnando dos antagonismos da sociedade. Não há como sustentar que sejam unívocos.
Sobre a música popular americana, também não dá para insistir na tese de que tudo é tosco e sem sofisticação. Qualquer obra de Mozart, Haydn e Beethoven é ritmicamente mais simples do que a mais rotineira música de jazz. Melodicamente, vários "hits" da música americana são mais difíceis de seguir que a maioria das melodias de Haydn, por exemplo. Harmonicamente, a oferta de acordes dos assim chamados clássicos é, invariavelmente, mais limitada do que o de qualquer compositor de musicais da Broadway.
Apostar todas as fichas na manutenção da cultura erudita, como se isso fosse um refúgio diante da barbárie dominante, também não faz muito sentido hoje em dia. É uma atitude um tanto conservadora, como a pessoa que, querendo aplicar no mercado financeiro, estivesse procurando um investimento seguro. Muitos entusiastas da alta cultura parecem se comportar como colecionadores de preciosidades, procurando sempre a peça mais rara, mais "difícil". Com isso, vai-se criando um culto quase religioso da Cultura, dos Gigantes do Espírito, como se a cultura estivesse separada da vida das pessoas.
Os argumentos acima me parecem razoáveis e se afastam do famoso "elitismo adorniano". O leitor de hoje certamente se sente mais à vontade com os três últimos parágrafos do que com os raciocínios tão inflexíveis do nosso homenageado.
Só que... bem, peço desculpas pela vulgaridade, mas esses parágrafos "antielitistas" eu tirei, com algumas alterações, da própria obra de Adorno. O trecho sobre as ambiguidades do cinema está em "Notas sobre o Filme", o parágrafo sobre Mozart e o jazz está em "Sobre Música Popular", e a crítica aos entusiastas da cultura erudita está em "Crítica Cultural e Sociedade". Todos constam da antologia de textos de Adorno organizada por Gabriel Cohn para a editora Ática.
É verdade que forcei um pouco a argumentação, mas espero que isso seja pelo menos um convite a ler Adorno sem tanto preconceito, depois de passados os terrores de seu centenário.

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