|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Adorno e sua lista de proibições
Comemorou-se na semana
passada o centenário de nascimento de Theodor Adorno
(1903-1969). Tentei escapar desse
tema. Adorno tende a amedrontar até mesmo os seus admiradores. É que seus textos são em geral
muito difíceis.
Como leitor, é comum que eu
me sinta desnorteado. Às vezes
me lembro mais ou menos bem de
uma frase, de uma idéia, desta ou
daquela passagem de um livro de
Adorno. Mas, quando vou conferir o trecho, para ver se faço a citação correta, abro o livro e não
consigo encontrar mais o que estava procurando. O trecho parece
ter sumido, parece ter sido engolido pelo torvelinho dialético do raciocínio. Outros parágrafos, outras frases vêm à tona: não mais
as que eu estava procurando.
Outra coisa intimida bastante
neste centenário. O autor parece
ter-se tornado uma espécie de superego do intelectual de esquerda.
Associa-se a Adorno não o que
possa haver de liberador no seu
pensamento, mas uma lista de
proibições. Jazz não pode, MPB é
barbárie, literatura policial é desprezível, televisão dá câncer. Ai
de quem gostar dessas coisas! É
preciso reconhecer a importância
das críticas de Adorno à indústria
cultural, claro, mas não dá para
seguir à risca os seus padrões de
julgamento. O mais comum é dizer que ele tinha razão, mas que
era excessivamente radical...
Lembro-me de um retrato de
Adorno, já no fim da vida, careca,
rechonchudo, com os olhos muito
arregalados. Foi reproduzido na
contracapa de não sei que livro
dele. A foto exerce um efeito paralisante, ameaçador; é uma espécie
de Medusa do pensamento crítico, a que se contrapõe outra imagem dele, também muito reproduzida: é a de seu rosto de perfil,
como uma máscara, um selo,
uma moeda. O autor, congelado
pelo ar das alturas, com as pálpebras pesadas de enfado e desalento, ignora nossas inquietações.
Não quero sugerir que Adorno
tenha perdido a atualidade. Mesmo suas análises mais "antipáticas" sobre a indústria cultural são
atualíssimas. O que mudou, sem
dúvida, foram as perferências, as
disposições, o grau de tolerância,
o tipo de formação cultural dos
próprios intelectuais de esquerda,
das próprias pessoas que o lêem.
São poucos os que aceitam integralmente suas críticas ao cinema
hollyowoodiano, sua condenação
da música popular, sua defesa intransigente da cultura erudita.
Nesses três pontos, todo mundo
respeita Adorno, mas prefere outro tipo de enfoque.
No que diz respeito ao cinema
de Hollywood, por exemplo, é preciso levar em conta que mesmo
um filme "blockbuster" possibilita diferentes interpretações, e não
se resume a uma mensagem ideológica única. A ideologia de
Hollywood não é necessariamente o que acaba sendo absorvido
pelo espectador. A mensagem oficial vem acompanhada de outras
mensagens, "não-oficiais", por
assim dizer, que são justamente o
que torna o filme mais atraente
para o público. Mesmo no cinema
dos anos 50, em que triunfavam o
moralismo sexual, a apologia do
casamento e dos bons costumes,
havia um "subtexto" bem menos
conservador. Para atingir os espectadores, os filmes de Hollywood acabam se impregnando
dos antagonismos da sociedade.
Não há como sustentar que sejam
unívocos.
Sobre a música popular americana, também não dá para insistir na tese de que tudo é tosco e
sem sofisticação. Qualquer obra
de Mozart, Haydn e Beethoven é
ritmicamente mais simples do
que a mais rotineira música de
jazz. Melodicamente, vários
"hits" da música americana são
mais difíceis de seguir que a
maioria das melodias de Haydn,
por exemplo. Harmonicamente, a
oferta de acordes dos assim chamados clássicos é, invariavelmente, mais limitada do que o de
qualquer compositor de musicais
da Broadway.
Apostar todas as fichas na manutenção da cultura erudita, como se isso fosse um refúgio diante
da barbárie dominante, também
não faz muito sentido hoje em
dia. É uma atitude um tanto conservadora, como a pessoa que,
querendo aplicar no mercado financeiro, estivesse procurando
um investimento seguro. Muitos
entusiastas da alta cultura parecem se comportar como colecionadores de preciosidades, procurando sempre a peça mais rara,
mais "difícil". Com isso, vai-se
criando um culto quase religioso
da Cultura, dos Gigantes do Espírito, como se a cultura estivesse
separada da vida das pessoas.
Os argumentos acima me parecem razoáveis e se afastam do famoso "elitismo adorniano". O leitor de hoje certamente se sente
mais à vontade com os três últimos parágrafos do que com os raciocínios tão inflexíveis do nosso
homenageado.
Só que... bem, peço desculpas
pela vulgaridade, mas esses parágrafos "antielitistas" eu tirei, com
algumas alterações, da própria
obra de Adorno. O trecho sobre as
ambiguidades do cinema está em
"Notas sobre o Filme", o parágrafo sobre Mozart e o jazz está em
"Sobre Música Popular", e a crítica aos entusiastas da cultura erudita está em "Crítica Cultural e
Sociedade". Todos constam da
antologia de textos de Adorno organizada por Gabriel Cohn para
a editora Ática.
É verdade que forcei um pouco
a argumentação, mas espero que
isso seja pelo menos um convite a
ler Adorno sem tanto preconceito,
depois de passados os terrores de
seu centenário.
Texto Anterior: DVD/crítica: Polêmico, "Jackass" chega direto ao DVD Próximo Texto: Panorâmica - Evento: "Formação" recebe Fernando Bonassi e Ferréz Índice
|