São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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BIA ABRAMO

Entre aprendizes e infelizes...


A espécie "Aprendiz", com sua ambição, escarnece da "Infeliz" a cada impulso vencedor

"É SÓ televisão", a gente tenta se convencer, mas persiste um certo mal-estar. Em um momento, estamos num mundo de néon, eficiência, dentes brancos, salários em dólar; noutro, voltamos para um mundo da precariedade cotidiana e de seus personagens patéticos. O mundo número um é visto pela janela do arranha-céu e mostra o balé das luzes dos carros à noite, que transforma a cidade em um sistema circulatório de brilhos; é o mundo de "O Aprendiz". O mundo número dois está na glosa humorística do "Show do Tom" e chama-se "O Infeliz".
Exibir um esquete paródico logo depois de um programa de grande audiência é um truque inaugurado pelo "Casseta & Planeta". É uma boa idéia a TV mangar da TV.
Mas quando o "Casseta" entra com a gozação da novela, há uma continuidade: o mesmo espectador que se emociona com as desventuras do drama pode também se distanciar e rir dos exageros.
Entre "O Aprendiz", de Roberto Justus, e "O Infeliz", de Tom Cavalcanti, há um abismo intransponível.
É verdade que há elementos comuns, mas é como se os programas estivessem sendo produzidos não simplesmente para fatias diferentes de público, mas para audiências formadas por espécies diferentes.
Enquanto o primeiro é endereçado a uma classe média com parte das habilidades profissionais, um tanto de gana e muita falta de escrúpulos para almejar o topo do "grand monde" empresarial, o segundo é dirigido às pessoas a quem tudo (educação, saúde, cultura, segurança, auto-estima) foi sistematicamente negado para que os primeiros pudessem estar onde estão.
Nos traços exagerados da caricatura, presente tanto no programa humorístico quanto no "reality show", as diferenças tornam-se mais agudas e apontam para uma ruptura na substância mesma de que são feitos uns e outros. Assim, tornam-se espécies distintas, incapazes de conviver uma com a outra.
Os indivíduos da espécie "Aprendiz", com sua ambição deslavada e subserviência às regras do jogo, escarnecem da espécie "Infeliz" a cada impulso vencedor, como se dissessem: "A cada passo adiante, eu me afasto desse destino infeliz de ser pobre". Por sua vez, por trás da paródia "Infeliz", está uma incompreensão profunda, essencial dos modos, medos e mitos que movem esses seres do "Aprendiz". Daí que as piadas não funcionam, nem de lá nem de cá: o humor pressupõe um terreno comum que não mais existe.


biabramo.tv@uol.com.br

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