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BIA ABRAMO
Entre aprendizes e infelizes...
A espécie "Aprendiz", com sua ambição, escarnece da "Infeliz" a cada impulso vencedor
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"É SÓ televisão", a gente tenta se convencer, mas persiste um certo mal-estar.
Em um momento, estamos num
mundo de néon, eficiência, dentes
brancos, salários em dólar; noutro,
voltamos para um mundo da precariedade cotidiana e de seus personagens patéticos. O mundo número
um é visto pela janela do arranha-céu e mostra o balé das luzes dos carros à noite, que transforma a cidade
em um sistema circulatório de brilhos; é o mundo de "O Aprendiz". O
mundo número dois está na glosa
humorística do "Show do Tom" e
chama-se "O Infeliz".
Exibir um esquete paródico logo
depois de um programa de grande
audiência é um truque inaugurado
pelo "Casseta & Planeta". É uma boa
idéia a TV mangar da TV.
Mas quando o "Casseta" entra
com a gozação da novela, há uma
continuidade: o mesmo espectador
que se emociona com as desventuras
do drama pode também se distanciar e rir dos exageros.
Entre "O Aprendiz", de Roberto
Justus, e "O Infeliz", de Tom Cavalcanti, há um abismo intransponível.
É verdade que há elementos comuns, mas é como se os programas
estivessem sendo produzidos não
simplesmente para fatias diferentes
de público, mas para audiências formadas por espécies diferentes.
Enquanto o primeiro é endereçado a uma classe média com parte das
habilidades profissionais, um tanto
de gana e muita falta de escrúpulos
para almejar o topo do "grand monde" empresarial, o segundo é dirigido às pessoas a quem tudo (educação, saúde, cultura, segurança, auto-estima) foi sistematicamente negado para que os primeiros pudessem
estar onde estão.
Nos traços exagerados da caricatura, presente tanto no programa
humorístico quanto no "reality
show", as diferenças tornam-se mais
agudas e apontam para uma ruptura
na substância mesma de que são feitos uns e outros. Assim, tornam-se
espécies distintas, incapazes de conviver uma com a outra.
Os indivíduos da espécie "Aprendiz", com sua ambição deslavada e
subserviência às regras do jogo, escarnecem da espécie "Infeliz" a cada
impulso vencedor, como se dissessem: "A cada passo adiante, eu me
afasto desse destino infeliz de ser
pobre". Por sua vez, por trás da paródia "Infeliz", está uma incompreensão profunda, essencial dos modos,
medos e mitos que movem esses seres do "Aprendiz". Daí que as piadas
não funcionam, nem de lá nem de cá:
o humor pressupõe um terreno comum que não mais existe.
biabramo.tv@uol.com.br
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