São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2008

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MARCELO COELHO

Confissões de um ignorante


O modelo torna-se mais importante. Morrem a curiosidade científica e o respeito pelo real

COM LÉPTONS, bósons e glúons mantenho relações de distância respeitosa: admiro-os, aprecio que circulem por aí em liberdade, mas meu interesse não vai além disso.
Fico sabendo da inauguração de um gigantesco colisor de hádrons na Suíça e me sinto até injusto. Diante dos enormes esforços internacionais conjuntos para fazê-lo funcionar, sei que estou perdendo alguma coisa, mas mantenho a recôndita felicidade de não saber bem o que é isso que perdi.
É um daqueles assuntos que desisto de entender antes mesmo de tentar que me expliquem. Sou dos tempos em que o átomo era um simpático sistema solar em miniatura, com os elétrons em volta do núcleo, formando um desenho que imitava a forma dos alfinetes de fralda.
Já não existem mais alfinetes desse jeito, graças a Deus, e o velho modelo de Rutherford já estava ultrapassado quando me fizeram tomar conhecimento dele. É culpa minha, se não me atualizo nessas matérias de ciência; não faltam excelentes livros de divulgação. Mas não é culpa minha, se o que caiu nas minhas mãos foi "O Universo numa Casca de Noz", de Stephen Hawking. Vinha com ilustrações lindas, mas era didático só na aparência; dois parágrafos bastaram para que ninguém entendesse mais nada.
Não é, entretanto, o único livro de divulgação científica a fazer sucesso.
As livrarias estão cheias de títulos capazes de atender à curiosidade de leitores menos traumatizados do que eu.
Minha pergunta é simples. Se há tanta coisa interessante nesses livros, por que transformam o ensino de ciências no ginásio e no colégio uma coisa tão chata e tão difícil?
Não seria melhor dar ao aluno uma "formação científica" geral, com base em livros desse tipo, do mesmo modo que se fala em dar uma "formação humanística" ou "formação literária"?
De resto, seria tudo "formação humanística": entender o método da ciência, a beleza da ciência, o engenho humano utilizado nas experiências e invenções, haveria de ser bem melhor do que treinar, como um cão pavloviano, centenas de exercícios de ótica e de química orgânica.
Por sorte, não tive de lidar com esses bichos-papões na minha vida escolar. Logo fui para humanas, e o que tive de ciências foi o básico do básico. Mesmo assim, quando me lembro das aulas e das lições de casa, experimento uma revolta comigo mesmo e com o sistema escolar.
Só agora, por exemplo, ocorrem-me algumas perguntas que qualquer aluno de sétima série deveria fazer; e me parece grave que não surjam com freqüência na sala de aula.
Não me refiro à clássica questão, esta sempre repetida: "Para que serve essa joça?" Passo por cima disso, e vou a alguns casos concretos. Por exemplo, todos nós aprendemos as leis de Mendel, e o famoso exemplo das ervilhas de casca rugosa e lisa, logo em seguida transposto para a genética humana: genes de olhos azuis são recessivos, para olhos negros são dominantes.
Todo mundo entendeu? Então, dá-lhe lição de casa. O que me espanta é que ninguém pergunte ao professor, numa hora dessas, como fica o caso dos que têm olhos castanhos, ou de um verde amarronzado... Deve haver alguma explicação para isso; envergonho-me de nunca tê-la solicitado.
Aprender o modelo torna-se mais importante do que qualquer questionamento. Duas coisas morrem nessa sala de aula: o espírito de inquirição científica e o respeito aos fatos da vida real.
Outro exemplo. A gente aprende na escola que a carga positiva atrai a negativa, e até nos dão uns ímãs para provar que é impossível juntar seus pólos positivos. Na aula seguinte, estamos aprendendo sobre átomos e, no célebre núcleo, encontramos um grupo de prótons grudadinhos um no outro.
Novamente, ninguém levanta a mão e pergunta por que, dentro do núcleo, o positivo está grudado com outro positivo. Alguém poderia levantar essa dúvida; os professores poderiam estimulá-la, até. Mas todo mundo vai em frente na matéria.
Longa vida, em todo caso, ao novo colisor de hádrons. Fico desconfiado, é verdade, com o tamanho da geringonça: 27 km! Uma coisa dessas sempre me parece meio primitiva, como os computadores a válvula, que ocupavam salas enormes. Como os primeiros marca-passos de coração, que tinham o tamanho de um armário. Ou como os dinossauros. E como eu mesmo, que já estou bem crescidinho para fazer perguntas aos professores que não tenho mais.

coelhofsp@uol.com.br


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