São Paulo, sábado, 17 de setembro de 2011

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Cooperifa mistura todos os versos e leva até estrangeiro à periferia

Leituras do sarau na quarta à noite no Jardim Guarujá têm rap, cordel e literatura consagrada

Pesquisadores e artistas de outros países se juntam a moradores locais em encontro que virou referência em SP


FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

Chamada ao palquinho, dona Efigênia, 72, de início gaguejou um pouco ao declamar seu poema em homenagem a Pelé, "Jogo de Bola".
Mas logo pegou o jeito e, como quase todos os que se arriscam ali, foi ovacionada.
"O inimigo me odeia/ mas eu não me importo/ minha vida é livre/ e faço o que gosto" -estes os últimos versos.
Ao final da noite, Efigênia Rodrigues Pereira, doméstica aposentada (repetindo: 72 anos), aluna do ensino fundamental de um colégio do Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo, exultava.
"A gente vai se soltando, tendo uma oportunidade de procurar o caminho dos famosos. Foi legal demais."
Ela estava entre as 50 pessoas que declamaram algum texto poético no último sarau da Cooperifa, quarta passada, no bar do Zé Batidão.
Uma ida ao boteco do Jardim Guarujá, em frente a uma praça de bairro cercada por casas de bairro, na quarta à noite, explica por que, aos dez anos, o sarau virou a mais forte referência da cena literária da periferia paulistana.
Dona Efigênia e seus colegas de escola, todos adultos, se misturavam naquele dia a rappers, poetas de cordel e declamadores de todo tipo de versos, próprios ou alheios: confessionais, rimados, ingênuos, revoltados, livres.
Unindo a todos, o gosto de ir ao palquinho declamar.
Um mês antes, noutra noite acompanhada pela reportagem, estavam lá dois gringos: a alemã Ingrid Hapke, 32, pesquisadora da Universidade de Hamburgo, e o performer americano Raphi, 30.
"Sarau igual ao da Cooperifa não tem igual no mundo. Em Nova York, o Nuyorican tem uma energia parecida, mas aqui a galera escuta, se entrega à poesia. A diversidade é incrível -não é qualquer lugar da periferia que aceita um gringo", disse Raphi.
Hapke, que estuda literatura periférica, endossa. "É algo da comunidade mesmo, coletiva. Tem uma empolgação pela literatura que não conheço em outro lugar."
Articulador de tudo e idolatrado ali, o poeta Sérgio Vaz abre os trabalhos, e é amparado por um time de MCs (mestres de cerimônias) que introduzem os recitadores.
Antes do início, um dos MCs puxa o grito de guerra: "Povo unido. Povo inteligente. É tudo nosso!". Ao que todos respondem: "Uh, Cooperifa, uh, Cooperifa". Enquanto se lê, "o silêncio é uma prece", conforme o mantra lembrado a toda hora pelos MCs.
São cerca de 200 pessoas todas as quartas. Nada barra o sarau. A audiência ignora grandes jogos de futebol (não há TV no local). Durante os ataques do PCC em 2006, quase tudo na quebrada fechou -o sarau aconteceu.
Mesmo quem começou a organizar saraus antes de Vaz, como o poeta Binho, no bairro do Campo Limpo, admite que a Cooperifa "catalisou o que estava por aí".
O escritor Ademiro Alves, o Sacolinha, um dos estilos mais vigorosos entre os nomes surgidos na periferia, conta que até frequentar o sarau era duro divulgar seu trabalho. "Meu público leitor era minha mãe e uma vizinha. Hoje tenho um exército".
Ele coordena um sarau em Suzano e avalia que a maior conquista dessa cena periférica é o incentivo à leitura.
Na laje acima do bar, Sérgio Vaz, 48, aponta para um terreno perto. É o cemitério São Luiz, onde nos anos 80, auge da violência na periferia, eram enterrados os jovens da zona Sul.
"Com a erosão, os caixões rolavam morro abaixo. Hoje já não é assim, e por isso é que eu tenho orgulho."


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