São Paulo, quarta-feira, 17 de outubro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Anatomia das ruínas

Ao contrário da tuberculose ou do cancro, ninguém se "descobre" dependente; usar drogas é escolha individual N ÃO SEI se já falei nesta coluna de Theodore Dalrymple. Em caso positivo, não peço desculpa aos leitores. Sou reincidente na droga porque Dalrymple é como uma droga. E regressa agora, com livro de ensaios sobre, precisamente, a dita cuja: "Junk Medicine: Doctors, Lies and the Addiction Bureaucracy" (medicina da droga: médicos, mentiras e a burocracia do vício).
Explicação prévia: Dalrymple, pseudônimo do médico inglês Anthony Daniels, com vasta experiência no inferno (tradução: sistema prisional britânico), notabilizou-se nos últimos anos em ensaios de elegância extrema, versando sobre assuntos vários da literatura à política, passando pelo seu próprio calvário no submundo dos presídios.
Colunista da britânica "The Spectator" e da norte-americana "City Journal", ele pretende, com seu último livro, afirmar duas coisas. Primeiro: o drogado não é um doente. Segundo: a droga não é um poço sem fundo, do qual é difícil regressar.
O drogado não é um doente porque, ao contrário da tuberculose ou do cancro, ninguém "acorda" ou se "descobre" dependente.
A droga não "acontece"; o vício é uma escolha individual e, apesar dos mitos populares, é uma escolha que não nos entra propriamente em casa: ela exige procura e, depois de encontrada, exige disciplina no uso.
Essa, aliás, é a palavra essencial para Dalrymple: "disciplina". Para o autor, o que atira o drogado para substâncias pesadas não é a vontade prosaica de "fugir" da vida, como se ouve nas telenovelas.
É, pelo contrário, uma tentativa de encontrar uma forma de vida que exija, diariamente, um objetivo qualquer, um propósito com método.
Num mundo desabitado de valores culturais ou morais, e onde as existências humanas são exemplos de precariedade espiritual, não admira que o consumo aumente.
A droga apenas preenche o vazio que a família, a escola ou a igreja são incapazes de ocupar.
E depois de demolir o primeiro mito, Dalrymple destrói o segundo: a fantasia de que "deixar" o vício é uma luta titânica digna de uma odisséia de Melville.
A este respeito, Dalrymple relembra os soldados americanos consumidores de heroína que, depois de regressarem do Vietnã, abandonaram majoritariamente o vício.
O consumo estava psicologicamente ligado a uma situação de estresse e horror que convidava ao uso, mas que uma vida normal tornava dispensável.
Bem sei que, na cultura infantil de hoje, o livro de Dalrymple não será aplaudido pelas patrulhas.
Sobretudo pelas patrulhas médicas que transformaram a droga num negócio e que gostam de disseminar a simpática tese de que a droga é um vício que se apanha por aí, sendo o drogado uma vítima indefesa desse vírus terrível e inescapável.
Não é. A droga é uma escolha e, se existe responsabilidade no uso, ela está no indivíduo que escolhe consumir; e, depois, na cultura bovina e moralmente relativista que foi destruindo, um por um, os alicerces que sustentavam o edifício. Não admira que muitos acabem entre ruínas.


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