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MARCELO COELHO
Eles não usavam Rolex
O mordomo e seus patrões são lembranças dos tempos em que se usava casaca e black-tie
FINALMENTE FUI ver "Santiago", documentário de João
Moreira Salles que ficou meio
atrás na fila das prioridades cinematográficas com a estréia de "Tropa
de Elite". A blague é inevitável, mas
não se fazem mais elites como antigamente.
O mordomo Santiago era a principal figura de uma equipe de 22 empregados a serviço da família Moreira Salles -e surge no filme como alguém profundamente impregnado
pelos gostos e maneiras de seus patrões: pintura renascentista, ópera,
leituras nas mais diversas línguas...
Isolado num pequeno apartamento no Leblon, ele se apresenta como
testemunha de um mundo que ruiu;
agradece ao destino pela ótima memória e guarda pilhas e pilhas de
anotações sobre a vida dos grandes
príncipes e potentados da história
universal, cujos luxos e proezas
compara com os daqueles a quem
serviu.
As imagens da mansão abandonada dos Moreira Salles, que voltam
várias vezes no filme, reiteram discretamente essa nostalgia. João Moreira Salles não evitou nem mesmo a
simbologia, pouco original mas
sempre eficaz visualmente, das folhas de outono caindo sobre a piscina onde já ninguém mergulha.
A essas notas fundamentais de
tristeza sem reparação, o filme
acrescenta um contraponto crítico
(e autocrítico). A luta de classes se
revela nos detalhes, e o documentarista faz questão de sublinhá-los
com certa insistência.
Chama a atenção, por exemplo,
para o tom autoritário da própria
voz, quando dava instruções a Santiago durante a filmagem. Mostra
várias vezes a impaciência de seu
personagem, forçado a repetir o
mesmo depoimento até que tudo fique a contento do diretor.
Há, sobretudo, as coisas que Santiago não disse. Quando ia falar da
própria sexualidade, Moreira Salles
o interrompeu. Sem dúvida, o mordomo teria muito a contar sobre
seus patrões, mas não se estimula
esse tipo de indiscrição.
O resultado, a meu ver, é um filme
interessante, mas repetitivo. O personagem retratado em "Santiago"
poderia ser mais um daqueles moradores do "Edifício Master" filmados
por Eduardo Coutinho, mas não segura um longa-metragem sozinho.
A não ser... a não ser que se veja o
filme de outro ângulo, e é isso o que
vou arriscar aqui. Menos do que o
retrato de uma personalidade exótica e sem dúvida interessante em si
mesma, "Santiago" diria respeito,
sobretudo, ao próprio diretor.
João Moreira Salles conta que,
quando era criança, surpreendeu
o mordomo tocando piano de madrugada, no salão do palacete. Santiago estava de fraque. Questionado
sobre o porquê da indumentária,
respondeu: "Porque é Beethoven,
meu filho".
A lembrança se relaciona, certamente, com algumas imagens do filme anterior de Moreira Salles, em
que vemos o pianista Nelson Freire,
vestido a caráter, sozinho no intervalo de um de seus concertos. Como
Santiago, Nelson Freire vive entre a
solidão e a "performance".
Um dos momentos mais bonitos
de "Santiago" é, aliás, a longa tomada da dança que o mordomo faz com
as mãos, ao som de música clássica:
como Nelson Freire, Santiago é
um artista da representação, da
interpretação.
Nos dois filmes aparece, aliás,
a admiração dos retratados pelos
musicais e dançarinos de Hollywood. Fred Astaire e Cyd Charisse
ocupam a tela por longos minutos
de "Santiago".
Fred Astaire representa o papel de
um dançarino popular, enquanto
sua companheira é uma bailarina
clássica. Os dois não se entendem,
até que, sem palavras, Cyd Charisse
começa a imitar os movimentos de
Astaire, e os dois se envolvem numa
dança que funciona como um verdadeiro jogo de espelhos.
Fiquei pensando se o mordomo
Santiago, um "plebeu" fascinado pela biografia dos aristocratas, não
funciona como uma espécie de espelho para Moreira Salles, o aristocrata fascinado pela biografia de um
plebeu.
O reflexo, evidentemente, não pode ser fiel. Culpa, escrúpulos e ressentimento impedem uma identificação absoluta, que se resolve desse
modo em jogo de aparências, em ato
performático -tanto por parte de
Santiago quanto por parte de Moreira Salles.
Reconhecem-se, entretanto, um
ao outro. Essa capacidade humana
não deixa de ser um luxo nos dias
que correm. O mordomo e seus patrões são lembranças dos tempos
em que se usava casaca e black-tie;
privilégios mais difíceis de arrancar
do que um Rolex. A luta de classes,
hoje, não tem classe nenhuma.
coelhofsp@uol.com.br
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