São Paulo, quarta-feira, 17 de outubro de 2007

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MARCELO COELHO

Eles não usavam Rolex

O mordomo e seus patrões são lembranças dos tempos em que se usava casaca e black-tie

FINALMENTE FUI ver "Santiago", documentário de João Moreira Salles que ficou meio atrás na fila das prioridades cinematográficas com a estréia de "Tropa de Elite". A blague é inevitável, mas não se fazem mais elites como antigamente.
O mordomo Santiago era a principal figura de uma equipe de 22 empregados a serviço da família Moreira Salles -e surge no filme como alguém profundamente impregnado pelos gostos e maneiras de seus patrões: pintura renascentista, ópera, leituras nas mais diversas línguas...
Isolado num pequeno apartamento no Leblon, ele se apresenta como testemunha de um mundo que ruiu; agradece ao destino pela ótima memória e guarda pilhas e pilhas de anotações sobre a vida dos grandes príncipes e potentados da história universal, cujos luxos e proezas compara com os daqueles a quem serviu.
As imagens da mansão abandonada dos Moreira Salles, que voltam várias vezes no filme, reiteram discretamente essa nostalgia. João Moreira Salles não evitou nem mesmo a simbologia, pouco original mas sempre eficaz visualmente, das folhas de outono caindo sobre a piscina onde já ninguém mergulha.
A essas notas fundamentais de tristeza sem reparação, o filme acrescenta um contraponto crítico (e autocrítico). A luta de classes se revela nos detalhes, e o documentarista faz questão de sublinhá-los com certa insistência.
Chama a atenção, por exemplo, para o tom autoritário da própria voz, quando dava instruções a Santiago durante a filmagem. Mostra várias vezes a impaciência de seu personagem, forçado a repetir o mesmo depoimento até que tudo fique a contento do diretor.
Há, sobretudo, as coisas que Santiago não disse. Quando ia falar da própria sexualidade, Moreira Salles o interrompeu. Sem dúvida, o mordomo teria muito a contar sobre seus patrões, mas não se estimula esse tipo de indiscrição.
O resultado, a meu ver, é um filme interessante, mas repetitivo. O personagem retratado em "Santiago" poderia ser mais um daqueles moradores do "Edifício Master" filmados por Eduardo Coutinho, mas não segura um longa-metragem sozinho.
A não ser... a não ser que se veja o filme de outro ângulo, e é isso o que vou arriscar aqui. Menos do que o retrato de uma personalidade exótica e sem dúvida interessante em si mesma, "Santiago" diria respeito, sobretudo, ao próprio diretor.
João Moreira Salles conta que, quando era criança, surpreendeu o mordomo tocando piano de madrugada, no salão do palacete. Santiago estava de fraque. Questionado sobre o porquê da indumentária, respondeu: "Porque é Beethoven, meu filho".
A lembrança se relaciona, certamente, com algumas imagens do filme anterior de Moreira Salles, em que vemos o pianista Nelson Freire, vestido a caráter, sozinho no intervalo de um de seus concertos. Como Santiago, Nelson Freire vive entre a solidão e a "performance".
Um dos momentos mais bonitos de "Santiago" é, aliás, a longa tomada da dança que o mordomo faz com as mãos, ao som de música clássica: como Nelson Freire, Santiago é um artista da representação, da interpretação.
Nos dois filmes aparece, aliás, a admiração dos retratados pelos musicais e dançarinos de Hollywood. Fred Astaire e Cyd Charisse ocupam a tela por longos minutos de "Santiago".
Fred Astaire representa o papel de um dançarino popular, enquanto sua companheira é uma bailarina clássica. Os dois não se entendem, até que, sem palavras, Cyd Charisse começa a imitar os movimentos de Astaire, e os dois se envolvem numa dança que funciona como um verdadeiro jogo de espelhos.
Fiquei pensando se o mordomo Santiago, um "plebeu" fascinado pela biografia dos aristocratas, não funciona como uma espécie de espelho para Moreira Salles, o aristocrata fascinado pela biografia de um plebeu.
O reflexo, evidentemente, não pode ser fiel. Culpa, escrúpulos e ressentimento impedem uma identificação absoluta, que se resolve desse modo em jogo de aparências, em ato performático -tanto por parte de Santiago quanto por parte de Moreira Salles.
Reconhecem-se, entretanto, um ao outro. Essa capacidade humana não deixa de ser um luxo nos dias que correm. O mordomo e seus patrões são lembranças dos tempos em que se usava casaca e black-tie; privilégios mais difíceis de arrancar do que um Rolex. A luta de classes, hoje, não tem classe nenhuma.


coelhofsp@uol.com.br

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