|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Saramago usa Caim para atacar Deus
Nova obra do Prêmio Nobel apoia-se em passagens da história bíblica para expor crueldade e incoerência divinas
Às vésperas de completar
87 anos, escritor português produz intensamente, "talvez porque o fim da minha vida se aproxima"
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DA ILUSTRADA
Caim, o primogênito de Adão
e Eva que matou o irmão Abel,
mais parece um personagem da
ilha do seriado "Lost" nas mãos
de José Saramago em "Caim",
romance que é publicado mundialmente nesta semana.
Isso porque, além de cumprir, como na versão bíblica, a
condenação do senhor de vagar
de modo errante pelo mundo
após um monstruoso crime,
Caim também viaja no tempo.
O escritor português faz com
que o personagem visite várias
passagens do Antigo Testamento. Sempre de modo repentino. Sem se dar conta,
Caim dorme e acorda em épocas e situações diferentes.
Com esse recurso, Saramago
logra fazer com que esteja presente na provação de Abraão,
na condenação de Sodoma e
Gomorra, no episódio do bezerro de ouro de Moisés, na casa de
Jó. Para finalizar, Caim também participa -e altera- a saga de Noé e a Arca.
O propósito do escritor Prêmio Nobel não é muito desconhecido dos leitores. O que o
protagonista faz, em cada passagem deste engenhoso e bem
humorado romance, é questionar Deus e cada uma das decisões por ele tomadas.
Caim expõe o que vê como
maldade, injustiça, obsessão
pela violência e inverosimilhanças de diferentes ordens
em vários momentos.
"Caim é o que nasceu para
ver o inenarrável, caim é o que
odeia deus", escreve (os nomes
dos personagens são apresentados sempre em letra minúscula, de propósito).
O novo ataque à religião do
ateu Saramago surge quase 20
anos depois da polêmica desencadeada por "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". A versão
do português, cheia de ciladas
contra Deus, criou um mal-estar com o governo do país, que o
impediu de candidatar-se a um
prêmio europeu de literatura.
Saramago então abandonou
Portugal e foi viver na ilha espanhola de Lanzarote.
Em entrevista à Folha, por e-mail, Saramago explicou que o
tema de Caim era uma antiga
preocupação, e que não há vínculo direto entre este e a controversa história de Cristo que
catapultou-o à fama internacional e consolidou as convicções antirreligiosas do escritor.
Saramago reforçou o que havia dito em sabatina realizada
na Folha em novembro de
2008. Na ocasião, afirmou que
a Bíblia não era um livro que se
poderia deixar nas mãos de um
inocente, pois só conteria maus
conselhos, assassinatos, incestos. Agora, segue na pregação:
"À Bíblia eu chamaria antes um
manual de maus costumes.
Não conheço nenhum outro livro em que se mate tanto, em
que a crueldade seja norma de
comportamento e ato quase
natural."
Deus é chamado de "filho da
puta" com todas as letras em
"Caim". Esse senhor "rancoroso" admite a culpa pelo crime
contra Abel, não hesita em estimular guerras, matar crianças
inocentes, punir os bons e fazer
com que as pessoas acreditem
em situações improváveis. Como é possível um homem embriagado engravidar uma mulher? Como todos os animais
do planeta poderiam ter sido
representados na Arca de Noé?
São algumas das perguntas que
Caim se faz ao observar a trama
bíblica.
Saramago diz que, por meio
dele, tenta expor a "infinita dimensão da estupidez humana",
capaz de acreditar em fábulas
como essas. "Curiosamente,
não se repara que Deus não fez
nada durante a eternidade que
precedeu a (suposta) criação
do universo. Depois, não se sabe por que nem para que, resolveu fazer um universo. E desde
então está outra vez sem fazer
nada", conclui.
Produtividade
Às vésperas de completar 87
anos, Saramago anda numa fase muito produtiva. Depois de
"Viagem", lançou, em julho, "O
Caderno", com textos escritos
para o blog (blog.josesarama
go.org), e já pensa no próximo.
"Simplesmente, ainda tenho
algumas coisas para dizer. Talvez com mais urgência porque
o fim da minha vida se aproxima. Estou a escrever um novo
livro que nada tem que ver com
os imediatamente anteriores."
CAIM
Autor: José Saramago
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (176 págs.)
Texto Anterior: Dinamarqueses ironizam "mão invisível" de Smith Próximo Texto: Frase Índice
|