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LIVROS
Crítica/"Estive em Lisboa e Lembrei de Você"
Ruffato cria trama ágil com percepções vivas de Lisboa
Boa narrativa sugere andamento dos solavancos da vida e dos desgastes íntimos
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os leitores que preferem
o estímulo de uma bem
trilhada narrativa às
espirais agônicas de um sofisticado narrador sem assunto vão
se deixar levar pela história que
Luiz Ruffato faz correr com desenvoltura em seu novo romance, "Estive em Lisboa e
Lembrei de Você". O livro integra o projeto coletivo Amores
Expressos: um escritor convidado passa um mês numa cidade estrangeira, com o fito de coletar matéria para ficção.
Ruffato vestiu a pele do personagem Sérgio Souza Sampaio, a quem deu voz para narrar as experiências de um imigrante pobre de Cataguases na
capital portuguesa. O autor interessou-se mais pela experiência da imigração que por algum caso de "amor expresso",
que aliás não falta ao romance,
sem ser seu ponto forte.
Há lugares sociais e espaços
psicológicos especialmente
instáveis, cediços, difíceis de
habitar, que servem tanto à
projeção da miragem de uma
escalada e chegada vitoriosas
como à provação de um penoso
caminho, em que a pessoa praticamente não sai do lugar.
A experiência desses "pobres-diabos" (para lembrar um
tipo de personagem proposto
por José Paulo Paes), como a de
Sérgio neste romance, é sempre limitada, na ilusão de ser
também limítrofe: parece estar
a um passo do sucesso, da realização pessoal -mas esse passo
jamais é dado. Os títulos das
duas partes do livro ("Como
Deixei de Fumar" e "Como Voltei a Fumar") correspondem à
expectativa de uma liberação,
vivida em Cataguases, e à experiência lisboeta, que reafirma a
condição de precariedade.
Os insucessos da vida de Sérgio na cidade mineira, representados no casamento desastroso, na penúria econômica e
na falta de perspectiva, falam
da desesperança do lugar obscuro que ele ocupa na província
sem horizontes, e a imagem
animadora de uma Lisboa
cheia de oportunidades e euros,
à espera do homem esforçado,
converte-se no lugar da alienação, no lugar em que se é o outro, sujeito a preconceitos, estereótipos e rancores, cultivados sobretudo pela concorrência dos demais pobres-diabos.
Fluxo de consciência
A linguagem de Ruffato,
apresentada como recolha do
depoimento "minimamente
editado" do narrador-protagonista, vale-se do fluxo de consciência para ir recolhendo percepções e impressões muito vivas e detalhistas, cuja enumeração faz ágil a narrativa, dá
presença às pessoas e aos ambientes, sugere o andamento
dos solavancos da vida externa
e dos desgastes íntimos, além
de permitir uma pluralidade de
tons, incluindo-se os efeitos de
humor que, pela arte da expressão segura, surgem como que
desapercebidos pelo próprio
narrador.
Há mesmo a busca da plenitude de uma oralidade, marcada a princípio pelos acentos de
um falar mineiro, em que ressoam timbres de quem bem
"proseia", e depois marcada por
incorporações do falar lisboeta,
tudo resultando num estatuto
híbrido e divertido, que nem
por isso apaga as marcas da penosa condição do imigrante.
Ao fim e ao cabo, a história de
Sérgio não termina com o acender daquele novo cigarro, anos
depois de abandonado o vício:
parece que voltar a fumar tem
algo a ver com o vício incorrigível da esperança, ou do consolo.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura
brasileira na USP.
ESTIVE EM LISBOA E LEMBREI
DE VOCÊ
Autor: Luiz Ruffato
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,90 (88 págs.)
Avaliação: bom
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