São Paulo, sábado, 17 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Crítica/"Estive em Lisboa e Lembrei de Você"

Ruffato cria trama ágil com percepções vivas de Lisboa

Boa narrativa sugere andamento dos solavancos da vida e dos desgastes íntimos

ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os leitores que preferem o estímulo de uma bem trilhada narrativa às espirais agônicas de um sofisticado narrador sem assunto vão se deixar levar pela história que Luiz Ruffato faz correr com desenvoltura em seu novo romance, "Estive em Lisboa e Lembrei de Você". O livro integra o projeto coletivo Amores Expressos: um escritor convidado passa um mês numa cidade estrangeira, com o fito de coletar matéria para ficção.
Ruffato vestiu a pele do personagem Sérgio Souza Sampaio, a quem deu voz para narrar as experiências de um imigrante pobre de Cataguases na capital portuguesa. O autor interessou-se mais pela experiência da imigração que por algum caso de "amor expresso", que aliás não falta ao romance, sem ser seu ponto forte.
Há lugares sociais e espaços psicológicos especialmente instáveis, cediços, difíceis de habitar, que servem tanto à projeção da miragem de uma escalada e chegada vitoriosas como à provação de um penoso caminho, em que a pessoa praticamente não sai do lugar.
A experiência desses "pobres-diabos" (para lembrar um tipo de personagem proposto por José Paulo Paes), como a de Sérgio neste romance, é sempre limitada, na ilusão de ser também limítrofe: parece estar a um passo do sucesso, da realização pessoal -mas esse passo jamais é dado. Os títulos das duas partes do livro ("Como Deixei de Fumar" e "Como Voltei a Fumar") correspondem à expectativa de uma liberação, vivida em Cataguases, e à experiência lisboeta, que reafirma a condição de precariedade.
Os insucessos da vida de Sérgio na cidade mineira, representados no casamento desastroso, na penúria econômica e na falta de perspectiva, falam da desesperança do lugar obscuro que ele ocupa na província sem horizontes, e a imagem animadora de uma Lisboa cheia de oportunidades e euros, à espera do homem esforçado, converte-se no lugar da alienação, no lugar em que se é o outro, sujeito a preconceitos, estereótipos e rancores, cultivados sobretudo pela concorrência dos demais pobres-diabos.

Fluxo de consciência
A linguagem de Ruffato, apresentada como recolha do depoimento "minimamente editado" do narrador-protagonista, vale-se do fluxo de consciência para ir recolhendo percepções e impressões muito vivas e detalhistas, cuja enumeração faz ágil a narrativa, dá presença às pessoas e aos ambientes, sugere o andamento dos solavancos da vida externa e dos desgastes íntimos, além de permitir uma pluralidade de tons, incluindo-se os efeitos de humor que, pela arte da expressão segura, surgem como que desapercebidos pelo próprio narrador.
Há mesmo a busca da plenitude de uma oralidade, marcada a princípio pelos acentos de um falar mineiro, em que ressoam timbres de quem bem "proseia", e depois marcada por incorporações do falar lisboeta, tudo resultando num estatuto híbrido e divertido, que nem por isso apaga as marcas da penosa condição do imigrante. Ao fim e ao cabo, a história de Sérgio não termina com o acender daquele novo cigarro, anos depois de abandonado o vício: parece que voltar a fumar tem algo a ver com o vício incorrigível da esperança, ou do consolo.

ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura brasileira na USP.


ESTIVE EM LISBOA E LEMBREI DE VOCÊ

Autor: Luiz Ruffato
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,90 (88 págs.)
Avaliação: bom




Texto Anterior: Rodapé Literário: Roma em Pompeia
Próximo Texto: Lísias desvenda mundo corporativo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.