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MARCELO COELHO
Menino foi cadáver vivo da exclusão social
Algumas pessoas andam impacientes, começam a reclamar: o
verão não chega. Escrevo este artigo numa segunda-feira de frio. Da
janela do apartamento, vejo um
céu imóvel, invencível, paulistano
e sujo. Não reclamo.
Penso no que seria de nós sem
"La Niña": já teriam chegado as
primeiras inundações, os congestionamentos sufocantes, as compras de Natal, a lata em brasa dos
carros estacionados na rua, o ministro José Serra nos instruindo
sobre o combate à dengue e os cupins voadores (mas desses eu gosto) em volta das lâmpadas. O frio,
ao contrário, nos torna mais elegantes. Um pulôver ou um belo
blazer pelo menos me escondem
um pouco a barriga. Abriram um
novo shopping em Higienópolis.
Diminui a distância entre São
Paulo e Buenos Aires; ao mesmo
tempo, São Paulo se fixa em sua
identidade, bastante ameaçada
ultimamente, de garoas, ruas desertas, saudades da Europa, humores hostis e jeito enfarruscado.
Sem dúvida, o frio nos aproxima mais do Primeiro Mundo. É
meio ridículo, mas imagino que
um europeu, desembarcando no
aeroporto de Cumbica, surpreenda-se, agradavelmente, ao ver que
nosso clima não é assim tão quente em novembro.
O bairro da Vila Nova Conceição, onde nasci, não tinha antigamente muitas pretensões; éramos
vizinhos de verdureiros. Hoje é
uma espécie de periferia exclusiva
dos Jardins: lojas de luxo sem vitrine, restaurantes discretos em
tudo -menos no preço-, ostentação da falta de ostentação.
No supermercado mais próximo, o menor T.S.V., filho de uma
vendedora de chicletes, foi agarrado por um segurança e posto na
câmara frigorífica. Estava prejudicando, com pedidos de esmola,
sem dúvida, o livre andamento
das forças do mercado.
O caso teve repercussão nacional. O garoto não morreu. Passou
apenas uns 15 minutos à temperaturas perto de zero.
O folclore diz que todo médico
tem "um cadáver dentro do armário". O menino que pedia esmolas foi uma espécie de cadáver
vivo da exclusão social. Jogado
numa espécie de IML privado, viveu a "avant-première" de seu
destino como cadáver crivado de
balas.
O episódio pode ser interpretado
de várias maneiras. A mais razoável é a seguinte: trata-se de um
"congelamento" da questão social. Guardemos os miseráveis no
"freezer" e, quando pudermos,
operaremos seu descongelamento.
É um pouco a teoria de que é
preciso esperar o bolo crescer para
então dividi-lo. Com uma novidade: a proposta de que, enquanto o bolo fica no forno, congelamos seus supostos consumidores.
E para que precisamos de tantos
consumidores assim? Os que temos já basta.
Observo apenas que a riqueza
não é um bolo que precisa ir ao
forno. Ela existe indubitavelmente na Vila Nova Conceição. Dividi-la exige um abandono das metáforas culinárias, coisa difícil de
pensar num país de gourmets,
dietas light e carnes magras.
Talvez o menino congelado tenha sido a utopia, o emblema, o
outdoor do modo de vida yuppie.
O freezer do Pão de Açúcar é uma
espécie de Febem ISO-9000.
Enquanto isso... Enquanto isso
podemos apreciar o humorismo
amargo de Mario Covas, dizendo
que é melhor FHC ter seu carro
roubado do que o mesmo acontecer com um cidadão comum.
Será que Covas resolveu dizer o
que pensa? Todo dia vemos o governador rompendo os limites da
conveniência política.
Parece-me claro que, tendo vencido o câncer, Covas experimenta
uma euforia capaz de levá-lo a
verdadeiros escândalos discursivos. Tanto melhor.
Falta escândalo, falta humor à
oposição. No (fraco) livro de Stewart Home, "Assalto à Cultura"
(ed. Conrad), narra-se a ação de
um grupo vanguardista inglês
que poderia ser imitada aqui.
Vésperas de Natal. Há papais
noéis na frente das lojas de brinquedo. Um grupo vanguardista,
todos com roupa de Papai Noel,
invade a loja. E começa a distribuir de graça os brinquedos para
as crianças.
O que faz o gerente da loja?
Chama a polícia. E as crianças assistem, então, ao espetáculo inaudito da prisão de Papai Noel.
Será que não se poderia tentar
algo parecido na luxuosa festa de
cachorros promovida na Barra da
Tijuca há coisa de algumas semanas? Soltar vira-latas no meio dos
poodles? Onde estão os humoristas? Onde estão os estudantes?
Na virada do ano, afogaram
um colega na piscina do CAOC,
clube de estudantes de Medicina,
localizado no bairro de Pinheiros.
Ninguém teve a idéia de criar um
monumento -que digo?- um
vaso de flores secas que fosse, em
memória do rapaz chinês vitimado pela imbecilidade fascista do
trote. A indiferença prossegue, flutuando numa piscina azul de verão brasileiro, ou vivendo os prazeres do inverno enquanto o verão não chega.
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