São Paulo, Quarta-feira, 17 de Novembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Menino foi cadáver vivo da exclusão social

Algumas pessoas andam impacientes, começam a reclamar: o verão não chega. Escrevo este artigo numa segunda-feira de frio. Da janela do apartamento, vejo um céu imóvel, invencível, paulistano e sujo. Não reclamo.
Penso no que seria de nós sem "La Niña": já teriam chegado as primeiras inundações, os congestionamentos sufocantes, as compras de Natal, a lata em brasa dos carros estacionados na rua, o ministro José Serra nos instruindo sobre o combate à dengue e os cupins voadores (mas desses eu gosto) em volta das lâmpadas. O frio, ao contrário, nos torna mais elegantes. Um pulôver ou um belo blazer pelo menos me escondem um pouco a barriga. Abriram um novo shopping em Higienópolis. Diminui a distância entre São Paulo e Buenos Aires; ao mesmo tempo, São Paulo se fixa em sua identidade, bastante ameaçada ultimamente, de garoas, ruas desertas, saudades da Europa, humores hostis e jeito enfarruscado.
Sem dúvida, o frio nos aproxima mais do Primeiro Mundo. É meio ridículo, mas imagino que um europeu, desembarcando no aeroporto de Cumbica, surpreenda-se, agradavelmente, ao ver que nosso clima não é assim tão quente em novembro.
O bairro da Vila Nova Conceição, onde nasci, não tinha antigamente muitas pretensões; éramos vizinhos de verdureiros. Hoje é uma espécie de periferia exclusiva dos Jardins: lojas de luxo sem vitrine, restaurantes discretos em tudo -menos no preço-, ostentação da falta de ostentação.
No supermercado mais próximo, o menor T.S.V., filho de uma vendedora de chicletes, foi agarrado por um segurança e posto na câmara frigorífica. Estava prejudicando, com pedidos de esmola, sem dúvida, o livre andamento das forças do mercado.
O caso teve repercussão nacional. O garoto não morreu. Passou apenas uns 15 minutos à temperaturas perto de zero.
O folclore diz que todo médico tem "um cadáver dentro do armário". O menino que pedia esmolas foi uma espécie de cadáver vivo da exclusão social. Jogado numa espécie de IML privado, viveu a "avant-première" de seu destino como cadáver crivado de balas.
O episódio pode ser interpretado de várias maneiras. A mais razoável é a seguinte: trata-se de um "congelamento" da questão social. Guardemos os miseráveis no "freezer" e, quando pudermos, operaremos seu descongelamento.
É um pouco a teoria de que é preciso esperar o bolo crescer para então dividi-lo. Com uma novidade: a proposta de que, enquanto o bolo fica no forno, congelamos seus supostos consumidores.
E para que precisamos de tantos consumidores assim? Os que temos já basta.
Observo apenas que a riqueza não é um bolo que precisa ir ao forno. Ela existe indubitavelmente na Vila Nova Conceição. Dividi-la exige um abandono das metáforas culinárias, coisa difícil de pensar num país de gourmets, dietas light e carnes magras.
Talvez o menino congelado tenha sido a utopia, o emblema, o outdoor do modo de vida yuppie. O freezer do Pão de Açúcar é uma espécie de Febem ISO-9000.
Enquanto isso... Enquanto isso podemos apreciar o humorismo amargo de Mario Covas, dizendo que é melhor FHC ter seu carro roubado do que o mesmo acontecer com um cidadão comum.
Será que Covas resolveu dizer o que pensa? Todo dia vemos o governador rompendo os limites da conveniência política.
Parece-me claro que, tendo vencido o câncer, Covas experimenta uma euforia capaz de levá-lo a verdadeiros escândalos discursivos. Tanto melhor.
Falta escândalo, falta humor à oposição. No (fraco) livro de Stewart Home, "Assalto à Cultura" (ed. Conrad), narra-se a ação de um grupo vanguardista inglês que poderia ser imitada aqui. Vésperas de Natal. Há papais noéis na frente das lojas de brinquedo. Um grupo vanguardista, todos com roupa de Papai Noel, invade a loja. E começa a distribuir de graça os brinquedos para as crianças.
O que faz o gerente da loja? Chama a polícia. E as crianças assistem, então, ao espetáculo inaudito da prisão de Papai Noel.
Será que não se poderia tentar algo parecido na luxuosa festa de cachorros promovida na Barra da Tijuca há coisa de algumas semanas? Soltar vira-latas no meio dos poodles? Onde estão os humoristas? Onde estão os estudantes?
Na virada do ano, afogaram um colega na piscina do CAOC, clube de estudantes de Medicina, localizado no bairro de Pinheiros. Ninguém teve a idéia de criar um monumento -que digo?- um vaso de flores secas que fosse, em memória do rapaz chinês vitimado pela imbecilidade fascista do trote. A indiferença prossegue, flutuando numa piscina azul de verão brasileiro, ou vivendo os prazeres do inverno enquanto o verão não chega.


Texto Anterior: Crítica/Música Latina: Não tente escolher a melhor faixa
Próximo Texto: Literatura: Poeta estréia na literatura infantil
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.