São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 2000

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RESENHA
O vendaval assassino

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Você tem o coração sujo, então deve manter a garganta lavada!.."
Essa sentença enigmática era na verdade uma ameaça. Só um imigrante japonês poderia entendê-la no Brasil. Ela partia dos nacionalistas fanáticos, alinhados com a política do império nipônico e o culto do imperador durante a Segunda Guerra, contra os membros "adesistas" da colônia, que aceitavam a derrota do Japão.
Significava que os derrotistas eram traidores da pátria e deveriam manter o pescoço limpo para não poluir, com o seu sangue sujo, a lâmina da katana, a espada ritual dos samurais, com a qual seriam decapitados. Era para valer.
No seu livro mais recente, Fernando Morais narra a história da Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos, organização de fanáticos da colônia nipo-brasileira que se recusavam a aceitar as notícias da rendição japonesa, da ocupação americana e da renúncia pelo imperador de sua condição divina. Tudo isso para eles era impossível, além de inadmissível, e, se ocorresse, "cem milhões de japoneses cometeriam suicídio, acompanhando o imperador".
Essa convicção alucinada dividiu a comunidade entre os katigumi, patriotas, e os makegumi, derrotistas. Os primeiros eram em geral os imigrantes mais recentes, que praticamente ainda não falavam português, eram menos prósperos e sonhavam em poder voltar ao Japão. Os segundos eram a parte já mais adaptada da colônia, tinham interesses enraizados no Brasil e se informavam pela imprensa em português.
Para tirar dos katigumi o poder de influenciar a juventude, os "ilustrados" passaram a circular cartas e documentos em japonês descrevendo os detalhes da rendição. Como resposta, os patriotas formaram os tokkotai, "batalhões do vento divino", para assassinar os líderes makegumi. Em 13 meses, 23 pessoas foram mortas, 147 feridas e 31.380 imigrantes japoneses foram presos pela polícia brasileira.
Esse é um dos episódios mais traumáticos e menos conhecidos da história da imigração no Brasil. Seu impacto sobre a comunidade nipônica, em particular, mas também sobre as demais foi catastrófico. Ele inflamou os ânimos xenófobos e racistas que caracterizaram a política imigrantista desde Vargas.
Aliás, o estopim do conflito foi exatamente essa intolerância e a paranóia policial varguista. A opressão foi paga com a revolta, mas o peso da vingança, como sempre, caiu sobre os fracos e inocentes.
Numa narrativa empolgante, cortada de ação e suspense, Morais repõe os pingos nos "is" e dá à justiça uma chance que ela nunca teve nessa história sem heróis.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da USP e autor de "Pindorama Revisitada" (ed. Fundação Peirópolis), entre outros
Corações Sujos      Autor: Fernando Morais Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 31,50 (344 págs.)


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