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RESENHA
O vendaval assassino
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Você tem o coração sujo,
então deve manter a garganta lavada!.."
Essa sentença enigmática era na
verdade uma ameaça. Só um imigrante japonês poderia entendê-la no Brasil. Ela partia dos nacionalistas fanáticos, alinhados com
a política do império nipônico e o
culto do imperador durante a Segunda Guerra, contra os membros "adesistas" da colônia, que
aceitavam a derrota do Japão.
Significava que os derrotistas
eram traidores da pátria e deveriam manter o pescoço limpo para não poluir, com o seu sangue
sujo, a lâmina da katana, a espada
ritual dos samurais, com a qual
seriam decapitados. Era para valer.
No seu livro mais recente, Fernando Morais narra a história da
Shindo Renmei, a Liga do Caminho dos Súditos, organização de
fanáticos da colônia nipo-brasileira que se recusavam a aceitar as
notícias da rendição japonesa, da
ocupação americana e da renúncia pelo imperador de sua condição divina. Tudo isso para eles era
impossível, além de inadmissível,
e, se ocorresse, "cem milhões de
japoneses cometeriam suicídio,
acompanhando o imperador".
Essa convicção alucinada dividiu a comunidade entre os katigumi, patriotas, e os makegumi,
derrotistas. Os primeiros eram
em geral os imigrantes mais recentes, que praticamente ainda
não falavam português, eram menos prósperos e sonhavam em
poder voltar ao Japão. Os segundos eram a parte já mais adaptada
da colônia, tinham interesses
enraizados no Brasil e se informavam pela imprensa em português.
Para tirar dos katigumi o poder
de influenciar a juventude, os
"ilustrados" passaram a circular
cartas e documentos em japonês
descrevendo os detalhes da rendição. Como resposta, os patriotas
formaram os tokkotai, "batalhões
do vento divino", para assassinar
os líderes makegumi. Em 13 meses, 23 pessoas foram mortas, 147
feridas e 31.380 imigrantes japoneses foram presos pela polícia
brasileira.
Esse é um dos episódios mais
traumáticos e menos conhecidos
da história da imigração no Brasil.
Seu impacto sobre a comunidade
nipônica, em particular, mas também sobre as demais foi catastrófico. Ele inflamou os ânimos xenófobos e racistas que caracterizaram a política imigrantista desde Vargas.
Aliás, o estopim do conflito foi
exatamente essa intolerância e a
paranóia policial varguista. A
opressão foi paga com a revolta,
mas o peso da vingança, como
sempre, caiu sobre os fracos e inocentes.
Numa narrativa empolgante,
cortada de ação e suspense, Morais repõe os pingos nos "is" e dá à
justiça uma chance que ela nunca
teve nessa história sem heróis.
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura da USP e autor de "Pindorama Revisitada" (ed. Fundação Peirópolis), entre outros
Corações Sujos
Autor: Fernando Morais
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31,50 (344 págs.)
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