São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

País redescobre músico, que lança primeiro disco unicamente nacional em 16 anos
Pós-David Byrne, Tom Zé volta aos braços do Brasil


"Jogos de Armar - Faça Você Mesmo" inclui "CD auxiliar" para ser remontado pelo ouvinte


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil redescobriu Tom Zé. O artista baiano de Irará, de 64 anos e tropicalista por origem, amargou duas décadas de ostracismo e mais uma sobrevivendo musicalmente à custa da simpatia do gringo David Byrne. Agora, lança seu primeiro disco produzido no e para o Brasil em 16 anos.
"Jogos de Armar - Faça Você Mesmo" (que estreará em show na próxima quarta, no DirecTV Hall) sai pela paulistana Trama, que o recapturou da adoção por Byrne e deu aval às maluquices que quisesse fazer. Assim foi que Tom Zé pôde passar sete meses em estúdio -nos 80, gravava de madrugada, em horário gratuito-, inclusive substituindo todo o projeto no meio do trajeto.
Pôde reincorporar instrumentos estranhos como "enceroscópio", "buzinório" e "hertzé" -nos 70, até vendera uma casa para construí-los. Viabilizou ainda um "CD auxiliar", "Cartilha de Parceiros", em que módulos instrumentais das canções são isolados para que o ouvinte possa recombiná-los e, quem sabe, compor parcerias à distância.
Apesar do segundo CD, a capa vem com o aviso de que "não é um CD duplo", segundo Tom Zé para impedir que as lojas o vendam a preço dobrado. Leia a seguir trechos de sua entrevista.

Folha - Você já pode fazer um balanço de sua reentrada no sucesso?
Tom Zé -
Falo com muito mais pessoas na rua. A Trama vendeu 40 mil discos de "Defeito de Fabricação" (98, lançado aqui em 99). A gravadora tem interesse, qualquer coisa de que necessite ela atende. Eu havia feito o projeto de um disco de canções, coisas que durante a época do ostracismo fui obrigado a fazer para voz e violão. No meio disso, ouvi as fitas de um show que fiz em 78. Mostrei para João Marcello Bôscoli (diretor da Trama e filho de Elis Regina), ele aceitou mudar os planos.

Folha - O que são esses instrumentos que você inventou?
Tom Zé -
O instrumento que mais produz novidade -novidade, não posso dizer isso...- é o hertzé. Uma vez li uma frase do arquiteto Buckminster Fuller, que dizia assim: "Não é tempo da posse, é tempo do uso". Não sabia se ele queria dizer ou eu queria ler que todas as orquestras do mundo podem tocar para mim -daí a história de que inventei o sampler brasileiro. Era a chamada orquestra de hertz, depois ficou hertzé.
Quando você está vivo no planeta Terra, você olha e tem 180 graus de céu. O ouvido humano atinge até 5.000 hertz, mas todos os discos do mundo só chegam a 4.500. É como se naquele outro pedaço do céu fosse proibido ter estrelas. Passei a me preocupar com essa região. O instrumento é isso. Pego violinos, gravo no estúdio ou roubo de discos, boto uma ou duas oitavas acima e vou para aquela região. Não é comestível, não é prazer? Por que jogar fora?
O enceroscópio nasceu de um acaso. Havia uma enceradeira emperrada em casa. Fui tentar consertar, vi que ela podia fazer ritmo. Peguei outra e tentei fazer o quebramento igual, ficar defeituosa também. Fizemos um desse em 78, que depois destruímos por não ter onde guardar. Agora fiz os que já havia desenvolvido, que já tinha certeza que davam certo, mas espero nos próximos anos vir a apresentar outros instrumentos.
Vendemos uma casa em 78 para fazer os instrumentos pela primeira vez. Eles iam entrar no disco "Nave Maria", mas no final não podia botar mais nada, tinha de acabar porque o estúdio ia fechar.
Eu estava tão confuso na minha vida que isso só tem explicação na psiquiatria. Como chama aquele negócio que a cabeça racha e você não sabe o que pensa de lá e de cá? Esquizofrenia. Ser afastado do colo da mãe, um artista ser afastado do colo do público... Fiquei doente de todo jeito, estive para morrer três ou quatro vezes. Não tinha doença, era a cabeça que enrolava. Em 85, não digeria nada. Ficava em pé para enganar Neusa (sua mulher), para ela pensar que eu estava vivo. Estômago, intestino, nada funcionava, tudo deteriorado, a pele da mão apodrecendo, alergias. Fui à macrobiótica, me curei com dez dias de arroz.

Folha - O sucesso é curativo?
Tom Zé -
É, sucesso é uma forma de saúde. Eu havia conhecido o colo da mãe e havia sido subtraído dele, em 73, quando "Todos os Olhos" deixou de tocar e eu fui sumindo. Um artista é submetido a doses grandes de carícia. Alguns até só sabem receber carícia, não sabem receber nem crítica. Mas posso me orgulhar porque mesmo quando não havia nenhuma carícia consegui trabalhar, reconstruir. É claro que tenho amor por mim e vaidade, mas tenho também amor pela música.

Folha - Por que tantos palavrões e palavras "proibidas" no disco?
Tom Zé -
Antes de o homem se tornar o adulto amorfo, existe a necessidade da rebeldia. As enceradeiras são xingamentos ao nariz das musas, ao gosto médio vigente. Quando faço um ritmo arrevesado, estou desrespeitando o velho que é contido até no jovem brasileiro, que consome sem sensibilidade uma música porca, velha, morta. A rebeldia está em vários pontos, também na inocência dos nomes feios e xingamentos.

Folha - Como foi voltar a gravar especialmente para o Brasil?
Tom Zé -
Sinto-me muito alegre. Antigamente pensava que podia não ter dinheiro no fim do mês para pagar o aluguel. Agora penso em música. Levaram-me para esse substantivo comum formidável, a Trama. Curiosamente vim a me tornar herdeiro de Elis Regina.

Folha - Um dos pilares da Trama são os filhos de Simonal, Elis e Jair Rodrigues, mais conservadores segundo a ótica tropicalista. Seria um tipo de neoconservadorismo?
Tom Zé -
Eu os acompanho, assisto, torço, gosto. Mas o rap, a música da periferia em que a Trama também investe, me atrai um pouco mais, porque é estranhíssimo para mim. O deles eu conheço. Mas não sei se são continuadores dos pais. No Brasil, as pessoas que falam que fazem música brasileira fazem balada americana, não levo isso a sério. Dizem que o samba foi abandonado, não acredito mais nesses nacionalistas. Os meninos estão se divertindo. Se não sou radical com o axé, que é a autocomplacência mais evidente, vou ser com os que estão perto de mim, lutando para começarem suas vidas? Não.


Texto Anterior: Grandes hits, bom show, mas...
Próximo Texto: Álbum explicita alegria
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.