|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
País redescobre músico, que lança primeiro disco unicamente nacional em 16 anos
Pós-David Byrne, Tom Zé volta aos braços do Brasil
"Jogos de Armar - Faça Você Mesmo" inclui "CD auxiliar" para ser remontado pelo ouvinte
|
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
O Brasil redescobriu Tom Zé. O
artista baiano de Irará, de 64 anos
e tropicalista por origem, amargou duas décadas de ostracismo e
mais uma sobrevivendo musicalmente à custa da simpatia do
gringo David Byrne. Agora, lança
seu primeiro disco produzido no
e para o Brasil em 16 anos.
"Jogos de Armar - Faça Você
Mesmo" (que estreará em show
na próxima quarta, no DirecTV
Hall) sai pela paulistana Trama,
que o recapturou da adoção por
Byrne e deu aval às maluquices
que quisesse fazer. Assim foi que
Tom Zé pôde passar sete meses
em estúdio -nos 80, gravava de
madrugada, em horário gratuito-, inclusive substituindo todo
o projeto no meio do trajeto.
Pôde reincorporar instrumentos estranhos como "enceroscópio", "buzinório" e "hertzé"
-nos 70, até vendera uma casa
para construí-los. Viabilizou ainda um "CD auxiliar", "Cartilha de
Parceiros", em que módulos instrumentais das canções são isolados para que o ouvinte possa recombiná-los e, quem sabe, compor parcerias à distância.
Apesar do segundo CD, a capa
vem com o aviso de que "não é
um CD duplo", segundo Tom Zé
para impedir que as lojas o vendam a preço dobrado. Leia a seguir trechos de sua entrevista.
Folha - Você já pode fazer um balanço de sua reentrada no sucesso?
Tom Zé - Falo com muito mais
pessoas na rua. A Trama vendeu
40 mil discos de "Defeito de Fabricação" (98, lançado aqui em 99).
A gravadora tem interesse, qualquer coisa de que necessite ela
atende. Eu havia feito o projeto de
um disco de canções, coisas que
durante a época do ostracismo fui
obrigado a fazer para voz e violão.
No meio disso, ouvi as fitas de um
show que fiz em 78. Mostrei para
João Marcello Bôscoli (diretor da
Trama e filho de Elis Regina), ele
aceitou mudar os planos.
Folha - O que são esses instrumentos que você inventou?
Tom Zé - O instrumento que
mais produz novidade -novidade, não posso dizer isso...- é o
hertzé. Uma vez li uma frase do
arquiteto Buckminster Fuller, que
dizia assim: "Não é tempo da posse, é tempo do uso". Não sabia se
ele queria dizer ou eu queria ler
que todas as orquestras do mundo podem tocar para mim -daí a
história de que inventei o sampler
brasileiro. Era a chamada orquestra de hertz, depois ficou hertzé.
Quando você está vivo no planeta Terra, você olha e tem 180
graus de céu. O ouvido humano
atinge até 5.000 hertz, mas todos
os discos do mundo só chegam a
4.500. É como se naquele outro
pedaço do céu fosse proibido ter
estrelas. Passei a me preocupar
com essa região. O instrumento é
isso. Pego violinos, gravo no estúdio ou roubo de discos, boto uma
ou duas oitavas acima e vou para
aquela região. Não é comestível,
não é prazer? Por que jogar fora?
O enceroscópio nasceu de um
acaso. Havia uma enceradeira
emperrada em casa. Fui tentar
consertar, vi que ela podia fazer
ritmo. Peguei outra e tentei fazer o
quebramento igual, ficar defeituosa também. Fizemos um desse
em 78, que depois destruímos por
não ter onde guardar. Agora fiz os
que já havia desenvolvido, que já
tinha certeza que davam certo,
mas espero nos próximos anos vir
a apresentar outros instrumentos.
Vendemos uma casa em 78 para
fazer os instrumentos pela primeira vez. Eles iam entrar no disco "Nave Maria", mas no final não
podia botar mais nada, tinha de
acabar porque o estúdio ia fechar.
Eu estava tão confuso na minha
vida que isso só tem explicação na
psiquiatria. Como chama aquele
negócio que a cabeça racha e você
não sabe o que pensa de lá e de cá?
Esquizofrenia. Ser afastado do colo da mãe, um artista ser afastado
do colo do público... Fiquei doente de todo jeito, estive para morrer
três ou quatro vezes. Não tinha
doença, era a cabeça que enrolava. Em 85, não digeria nada. Ficava em pé para enganar Neusa (sua
mulher), para ela pensar que eu
estava vivo. Estômago, intestino,
nada funcionava, tudo deteriorado, a pele da mão apodrecendo,
alergias. Fui à macrobiótica, me
curei com dez dias de arroz.
Folha - O sucesso é curativo?
Tom Zé - É, sucesso é uma forma
de saúde. Eu havia conhecido o
colo da mãe e havia sido subtraído dele, em 73, quando "Todos os
Olhos" deixou de tocar e eu fui sumindo. Um artista é submetido a
doses grandes de carícia. Alguns
até só sabem receber carícia, não
sabem receber nem crítica. Mas
posso me orgulhar porque mesmo quando não havia nenhuma
carícia consegui trabalhar, reconstruir. É claro que tenho amor
por mim e vaidade, mas tenho
também amor pela música.
Folha - Por que tantos palavrões
e palavras "proibidas" no disco?
Tom Zé - Antes de o homem se
tornar o adulto amorfo, existe a
necessidade da rebeldia. As enceradeiras são xingamentos ao nariz
das musas, ao gosto médio vigente. Quando faço um ritmo arrevesado, estou desrespeitando o velho que é contido até no jovem
brasileiro, que consome sem sensibilidade uma música porca, velha, morta. A rebeldia está em vários pontos, também na inocência
dos nomes feios e xingamentos.
Folha - Como foi voltar a gravar
especialmente para o Brasil?
Tom Zé - Sinto-me muito alegre.
Antigamente pensava que podia
não ter dinheiro no fim do mês
para pagar o aluguel. Agora penso
em música. Levaram-me para esse substantivo comum formidável, a Trama. Curiosamente vim a
me tornar herdeiro de Elis Regina.
Folha - Um dos pilares da Trama
são os filhos de Simonal, Elis e Jair
Rodrigues, mais conservadores segundo a ótica tropicalista. Seria
um tipo de neoconservadorismo?
Tom Zé - Eu os acompanho, assisto, torço, gosto. Mas o rap, a
música da periferia em que a Trama também investe, me atrai um
pouco mais, porque é estranhíssimo para mim. O deles eu conheço. Mas não sei se são continuadores dos pais. No Brasil, as pessoas que falam que fazem música
brasileira fazem balada americana, não levo isso a sério. Dizem
que o samba foi abandonado, não
acredito mais nesses nacionalistas. Os meninos estão se divertindo. Se não sou radical com o axé,
que é a autocomplacência mais
evidente, vou ser com os que estão perto de mim, lutando para
começarem suas vidas? Não.
Texto Anterior: Grandes hits, bom show, mas... Próximo Texto: Álbum explicita alegria Índice
|