São Paulo, sábado, 17 de novembro de 2007

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ANTONIO CICERO

Democracia: formal ou profunda?


O regime político que ameace a democracia formal deve receber o nome de ditadura


N O DIA 7 do corrente, em Caracas, no campus da Universidade Central da Venezuela, um grupo armado abriu fogo contra estudantes que regressavam de uma manifestação pelo adiamento do referendo sobre a reforma constitucional que, entre outras coisas, institucionalizaria a reeleição ilimitada do presidente Chávez, além de lhe ampliar os poderes. No dia 9, esses mesmos estudantes foram chamados por Chávez de fascistas.
No dia seguinte, em reunião da Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e de Governo, em Santiago, Chávez acusou de fascista o ex-premiê espanhol Aznar, obrigando o atual premiê, o socialista Zapatero, a lhe pedir que respeitasse outros chefes de Estado, apesar de suas diferenças políticas. Atropelando grosseiramente a fala de Zapatero, Chávez, como se sabe, acabou por provocar o rei Juan Carlos, da Espanha, a convidá-lo a se calar.
Não pode ter escapado a ninguém capaz de pensar por conta própria que a acusação de Chávez saiu pela culatra. O que realmente evoca o fascismo é, em primeiro lugar, o conteúdo da reforma constitucional por ele proposta; em segundo, o método plebiscitário com que pretende legitimá-la (lembremo-nos de que referendos e plebiscitos eram o método favorito de Hitler para "legitimar" os seus atos ilegais); em terceiro, o fato de que não somente o seu governo já cassou a concessão para transmissão em sinal aberto de uma emissora de televisão da oposição (a RCTV), mas pretende cassar a concessão de outra (a Globovisión); em quarto, a violência dos grupos armados dos partidários do líder bolivarianista ao atacar os estudantes; em quinto, o cinismo com que ele acusou de fascistas justamente as vítimas dessa violência; e, em sexto, a histrionice e a truculência verbal com que viola as regras da discussão racional.
Para mim, porém, o que mais causa preocupação é que, depois de tudo, o presidente Lula tenha declarado que não falta democracia na Venezuela, pois ela já passou por "três referendos, três eleições não sei para quê, quatro plebiscitos". Essa é a "democracia direta" (leia-se a "ditadura plebiscitária") de Chávez: o povo aprova o que o governo propõe.
E é essa a "democracia direta" que pretendem os petistas que defendem a modificação da Constituição para permitir a terceira reeleição do presidente, a ampliação dos seus poderes, a diminuição dos poderes do Congresso etc.
A verdade é que as únicas democracias que se conhecem são as que se baseiam no equilíbrio dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O fortalecimento de qualquer um desses poderes em detrimento dos outros (ou o enfraquecimento de qualquer um deles em proveito dos outros) é muito perigoso.
A experiência latino-americana tem sido a da hipertrofia do Executivo. O resultado é, inevitavelmente, a ditadura. Exatamente isso é o que está a ocorrer na Venezuela e ocorrerá também aqui no Brasil, caso se enfraqueça o Legislativo usando o artifício -que sabemos caro aos regimes populistas e totalitários- de transferir suas atribuições a referendos e plebiscitos.
Grande parte da esquerda, nada tendo aprendido com as terríveis experiências das ditaduras de Stálin, Mao ou Pol-Pot, continua a desvalorizar o que qualifica de "democracia formal" em nome de -como se dizia, semana passada, no seminário da Academia da Latinidade, que teve lugar em Lima- uma "democracia profunda".
Pois bem, a verdadeira democracia não pode deixar de ser formal, porque não pode se prender a nenhum objetivo, programa, partido político ou líder particular, uma vez que, não podendo pressupor que este ou aquele seja dono da verdade absoluta, deve estar aberta a todos, exceto aos que atentem contra ela.
Que seja eleito este ou aquele candidato ou partido é inteiramente contingente à verdadeira democracia. Necessária é a garantia de que candidatos ou partidos diferentes tenham a possibilidade real de alcançar o poder.
Nunca é demais repetir que absolutamente nada pode justificar qualquer atentado contra o Estado de direito, a livre expressão do pensamento, a maximização da liberdade individual, a coexistência de uma multiplicidade de culturas e formas de vida, a autonomia da ciência, a autonomia da arte etc.: em suma, nada pode justificar qualquer atentado contra a preservação da sociedade aberta.
O regime político que ameace a verdadeira democracia, que é a democracia formal, deve ser chamado, não de democracia -profunda ou rasa-, mas de ditadura.


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