São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

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Sertão é "semente" de "A Pedra do Reino"

Luiz Fernando Carvalho opta por filmar na Paraíba para evitar "folclorismo"

Para ele, "criação não vem para explicar nada, tem que vir para confundir"; próxima adaptação será de romance de João Paulo Cuenca, do RJ

Renato Rocha Miranda/TV Globo
Gravação da microssérie "A Pedra do Reino", da TV Globo, que integra o projeto "Quadrante"


ESTHER HAMBURGER
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Na entrevista abaixo, feita em Taperoá, no sertão da Paraíba, Luiz Fernando Carvalho fala sobre os propósitos de "Quadrante", seu novo projeto, um conjunto de microsséries que abre com a "A Pedra do Reino". Na contramão do naturalismo que grassa no cinema e na televisão, o diretor pesquisa formas alternativas de expressão. Na esteira do filme "Lavoura Arcaica" e da série "Hoje É Dia de Maria", Carvalho vem propondo soluções visuais inovadoras, com base em textos literários adaptados em parceria com Luís Alberto de Abreu.
Em "A Pedra do Reino", o diretor optou por filmar em 16 mm, em vez da câmera digital da microssérie anterior. Mas é possível traçar uma linha de continuidade que perpassa seus diversos trabalhos, configurando um estilo próprio. Há confinamento na filmagem, poucas externas, planos longos e pouca câmera na mão.
Uma cidade cenográfica foi construída em uma rua de Taperoá, usando casas da cidade. Algumas fachadas permanecem inalteradas, outras ganharam ornamento em gesso, inspirado em lápides de cemitérios locais. Moradores seguem habitando suas casas-cenário. A busca da luz difusa permanece. A rua é fechada por um portal que serve de estúdio polivalente: igreja, sala de aula, gabinete e portal propriamente.  

FOLHA - Qual a idéia do projeto "Quadrante"?
LUIZ FERNANDO CARVALHO
- A idéia é realizar uma adaptação literária por semestre, tendo como base o trabalho de escritores contemporâneos regionais, jovens em plena produção. Ariano funciona como um abre-alas, por ser quem ele é, alguém que pensa a brasilidade. Outros são mais conhecidos em seus estados, como o maravilhoso contista gaúcho Sérgio Faraco. Todas as produções serão rodadas em locações, empregando elenco e artesãos locais.

FOLHA - Por que trabalhar com adaptações literárias?
CARVALHO
- A literatura consegue trabalhar nas entrelinhas. A vida não fica restrita a ação e reação, causa e efeito, moral da história, bom e mau.

FOLHA - Vocês criaram uma cidade cenográfica viva em pleno sertão. Qual a importância da geografia desse lugar para o projeto?
CARVALHO
- Estarmos aqui no sertão é fundamental na preparação de tudo. O território é a semente. É como se estivéssemos entrando no espaço da ancestralidade. Não só do autor, Ariano, mas da minha, que tenho parte da família nordestina, e dos atores, que são todos nordestinos. Daí a idéia da cidade-lápide como uma cidade-memória.

FOLHA - Você busca enraizamento para conseguir transcender o local?
CARVALHO
- Para não cair no folclorismo. A luta da vida contra a morte está no cerne da vida do sertanejo. Esse fio de navalha entre a seca e o inverno. Um grande agropecuário pode se transformar em um retirante em poucos meses. E quando você incorpora essa possibilidade de um dia perder tudo, você começa a rir da sua insignificância. Você percebe que é apenas mais uma coisa ao lado daquele pé de árvore que vai secar.

FOLHA - Quaderna, o anti-herói da história, é um contador de histórias que viaja no tempo desse reino-país-mundo...
CARVALHO
- No tempo de hoje, Quaderna é esse velho ator, velho rei, velho palhaço, que, ao mesmo tempo que continua pelas estradas atrás de um tesouro deixado pelos seus antepassados, permanece no centro da arena, contando a sua história. No meio de toda aquela praça cheia de gente de roupa de hoje em dia, está lá o pai dele. O público é o povo de Taperoá, onde a história real se deu. O público vai estar assistindo à sua própria história ser recontada.

FOLHA - Por que uma arena?
CARVALHO
- A arena cheia é a configuração de um espetáculo medieval, uma mistura de teatro de rua com auto sacramental. A idéia da arena é a de espremer a história em um espaço único, de forma que cada elemento que entre ali ganhe uma proporção mítica. Como em uma tragédia grega, nessa microssérie não existem cenas apenas para refrescar a narrativa. Não há lugar para o prosaico.

FOLHA - Quaderna alia a esperteza de um outro personagem de Suassuna, o João Grilo, com um lado quixotesco...
CARVALHO
- Ele tem um lado esperto, mas quanto mais ele cria, mais ele confunde. A criação é isso mesmo, não vem para explicar nada, tem que vir para confundir. No interrogatório, Quaderna faz uma grande confusão, com doses elevadíssimas, a um só tempo, de requinte, humor e tragédia. Ele espalha risos, dores, desvela falsos moralismos. Redige sua defesa judicial ao mesmo tempo em que escreve sua grande obra.

FOLHA - Estamos há centenas de quilômetros da costa. A experiência do deslocamento rumo a essa paisagem árida imensa gera estranhamento. Aqui, o celular não pega, há poucos telefones. Esse isolamento ajuda?
CARVALHO
- É muito importante. Estamos todos viciados em meia-dúzia de regras de cidade grande. É o celular. É andar na rua sem olhar para o céu porque há iluminação demais que impede de ver estrelas.

FOLHA - Depois dessa estada no sertão da Paraíba, o próximo....
CARVALHO
- Será uma estada no sertão de Copacabana, para fazer "Corpo Presente", de João Paulo Cuenca. Eu digo sertão de Copacabana porque, de certa forma, ao me aproximar da literatura, estou fugindo de qualquer forma realista, ou naturalista de encenação. Entendo que o naturalismo que se faz hoje não chega nem a se consolidar como linguagem. Ele é simplesmente nada. O naturalismo televisivo, mas também a atuação, na grande maioria das vezes, infelizmente é apenas uma questão de carisma do ator e do autor.


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