São Paulo, segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

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NELSON ASCHER

Paulo Rónai no seu centenário


Embora demonstrasse cedo suas qualidades de latinista, sua tábua de salvação foi o português

O CENTENÁRIO de nascimento de Paulo Rónai (seu sobrenome se pronuncia "Rô-nó-i", em três sílabas, com tônica na primeira) foi comemorado semana passada, na USP, com uma mesa-redonda organizada pelo professor John Milton, da qual participaram os professores Marileide Esqueda, Zsuzsanna Spiry, Reinaldo Pagura e este humilde colunista.
Rónai (1907-1992) foi, com Anatol Rosenfeld e Otto Maria Carpeaux, um dos três grandes exilados que, fugindo da crise Européia, da guerra iminente e da perseguição racista, trouxeram a um Brasil ainda meio provinciano, meio dependente das referências culturais francesas, novas informações, idéias, conceitos e práticas que haviam sido aperfeiçoadas na Europa Central. Se bem que muito coincidisse no que pensavam e conheciam, cada qual contribuiu com seu viés específico: Rosenfeld com o filosófico, Carpeaux com o histórico e Rónai com o filológico.
Nascido na Hungria, ele deixou o país no final de 1940 para chegar ao Brasil no início do seguinte. Judeu, filho de um livreiro, professor, tradutor, especialista em latim e línguas neolatinas, ele passara a juventude convivendo com o clima de anti-semitismo crescente que se instalara na Hungria depois da Primeira Guerra. Quando emigrou, já havia sido internado num campo de trabalhos forçados.
Rónai se salvou graças à paixão pelas línguas. Embora tivesse demonstrado cedo, por meio de traduções poéticas que seguem sendo publicadas em antologias, suas qualidades de latinista num país que prezava a erudição clássica, e apesar de sua francofilia explícita (cursara a Sorbonne e apresentara tese sobre Balzac), o idioma que se revelou sua tábua de salvação foi o português. Como não havia ao redor nem falantes da língua e muito menos algum curso, ele o estudara por conta própria, com gramáticas e dicionários na mão. Finalmente entrou em contato com um escritor brasileiro, o santista Ribeiro Couto (1898-1963), então diplomata na Holanda, e, correspondendo-se com ele, informou-se seja de nuances da língua, seja a respeito do que se escrevia por aqui.
Se há algo curioso nessa trajetória, é que o húngaro, sem fazer escala relevante na literatura portuguesa, se embrenhasse de imediato na brasileira e que, nesta, mais do que a consagrada, fosse a recente que o atraísse. O fato é que, malgrado passar na velhice a imagem (falsa) de um tradicionalista, avesso à vanguarda e às novidades, Rónai cresceu sob a influência de duas gerações que renovaram radicalmente a poesia e a prosa de seu país -o grupo que se formou em torno da revista "Nyugat" (Ocidente)- e foi amigo próximo de diversos expoentes da segunda.
A tradução literária era uma arte cultivada com afinco na Hungria como, aliás, em diversos outros países pequenos que não julgavam sua cultura auto-suficiente e desejavam demonstrar, por meio da incorporação dos clássicos, que sua língua nada ficava a dever a qualquer outra. Essas duas gerações modernistas, no entanto, praticaram e, discutindo-a incessantemente, teorizaram de tal maneira a tradução que, aos poucos, ela se converteu num dos pontos altos da patrimônio nacional. Rónai trouxe de lá tanto essa experiência como a constatação de que ela ajudava decisivamente a "cosmopolitizar" uma cultura.
Não é à toa, portanto, que, ao desembarcar no Rio, ele já conhecia a cena literária melhor do que muitos críticos locais. Drummond, Bandeira, Mário de Andrade e Cecília Meirelles, entre outros, haviam sido incorporados à antologia de poesia brasileira (a primeira do gênero) que ele publicara, em 1939, em Budapeste. (Rónai traduzira também uma coletânea dos poemas de Ribeiro Couto e é quase certo que foi com o auxílio deste que conseguiu o visto brasileiro.) Muitos se tornariam seus amigos pessoais e, entre os novos que fez, estava um diplomata que o ajudara nas tentativas, junto ao Itamaraty, de obter um visto para sua noiva e demais familiares que haviam ficado para trás. Certo dia, o amigo enviou-lhe seu livro de estréia. Tratava-se de "Sagarana".
Seu trabalho de tradutor e teórico do ofício é conhecido e celebrado. A importância de sua atividade crítica, nem tanto. Rónai, no entanto, esteve entre os primeiros a reconheceram a grandeza dos autores acima e, no caso de Guimarães Rosa (com quem compartilhava o interesse pelas minúcias lingüísticas), foi dos que mais se empenharam em elucidar as dificuldades de sua obra. A melhor homenagem que lhe poderia ser feita seria a republicação de seus ensaios, em particular aqueles sobre literatura brasileira, a começar por "Encontros com o Brasil" (1958).


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