São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

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MARCELO COELHO

Um beijo em outra dimensão


Passam os anos, mudam os corpos, e Cebolinha continua fugindo dos ataques da Mônica

PREPARE-SE PARA UMA notícia de alto impacto. Mônica deu um beijo em Cebolinha.
O fato ocorreu na edição número 4 da revista "Turma da Mônica Jovem", publicação em formato de mangá à venda nas bancas de jornal.
Cebolinha não é mais o mesmo.
Mônica, tampouco. São, agora, adolescentes às voltas com monstros e inimigos sobrenaturais, e dotados de uma beleza física que os antigos quadrinhos de Mauricio de Sousa não faziam pressupor.
Era de se imaginar, por exemplo, que Magali se transformasse numa obesa triste e descomunal. Ei-la, com formas perfeitas, ao lado de um atlético Cascão. Este continua avesso ao banho, mas não deixa de ser atraente apesar disso. Quanto a Franjinha, abandonou os óculos e transformou-se num galã.
Está enganado quem pensa que a nova revista se dirige apenas ao público jovem. Meu filho de seis anos está muito mais fixado no mangá do que nas habituais e tediosas estripulias infantis de Mônica e Cebolinha.
Nada mais natural: Mônica e Cebolinha, quando crianças, não saíam de suas obsessões costumeiras. Um chamava a outra de dentuça, a outra reagia com seu coelhinho de pelúcia.
Agora, nas revistas da "Turma da Mônica Jovem", os personagens de Mauricio enfrentam seres transformáticos, monstros de outra galáxia, bruxas siderais. É bem o mundo dos videogames e dos Power Rangers, que, como se sabe, têm sucesso garantido com as crianças.
Unidos contra o inimigo comum, um Cebolinha esbelto e uma Mônica de umbigo de fora encontram-se eletrizados um pelo outro e se beijam. Ou melhor: é Mônica quem beija Cebolinha. O diálogo merece ser mencionado.
Depois de uma vitória qualquer contra um monstro superpoderoso, Mônica pergunta a Cebolinha se ele ainda a considera uma gordinha dentuça. Cebolinha se embaraça.
Sabe que Mônica não é nenhuma gordinha, longe disso.
Mas... dentuça? Será? Mônica toma a iniciativa. Ainda se for dentuça, pode projetar os lábios para a frente, assim... E a linda menina dos mangás, na doçura de seus cílios longos, aproxima-se do rosto de Cebolinha, impondo-lhe o primeiro beijo.
O rapaz se apavora, e o mangá termina mostrando uma verdade eterna. A saber: passam-se os anos, mudam os corpos, e Cebolinha continua fugindo dos ataques da Mônica.
Pouco importa: na cena da nova revista, há algo que atrai o público infantil, mais do que o adolescente.
Consiste, sem dúvida, na mistura entre desejo e agressão. Mônica, a menina agressora, transforma-se em menina desejante, e Cebolinha, pobre exemplo da masculinidade ocidental, será sempre vítima das voracidades de uma amiguinha mais precoce.
Leio num artigo de jornal que muitas adolescentes americanas se divertem expondo fotos provocantes no Orkut. Uma delas diz que mandou sua foto a pedido de um garoto, que ela encontrou num acampamento organizado pela igreja de que faziam parte.
"Ele me pediu para mandar por e-mail. No começo eu pensei: "Você está maluco?" Só que, um dia, eu estava sozinha em casa e resolvi mandar..."
Ela diz que não está interessada no rapaz. "Eu só quero que ele me deseje. A questão é de poder, realmente de poder."
Dizer que a infância atual está muito sexualizada é um lugar-comum. Talvez caiba observar que não é propriamente o desejo aquilo que se estimula antes do tempo. Menos do que provocar fantasias inadequadas de namoro, acho que, com mais freqüência, o beijo de Mônica tem o efeito, nos meninos menores, de despertar violento acesso de riso.
É como se todas as ameaças de monstros e seres mutantes fossem percebidas, por uma criança pequena, como algo de relativamente simples, ao alcance de sua própria fantasia. O garoto sabe como lidar com tais perigos: terá sempre um raio laser ou um amuleto atômico com que vencê-los.
Mas o desejo de Mônica, e seu beijo, fazem intervir sobre a historinha o peso incomensurável do real.
O menino está às voltas com um medo e um embaraço a que não sabe responder. Seu riso não é de pânico, entretanto. É mais de alívio e de aprovação.
O alívio de ver, em desenhos simpáticos e suaves, alguma verdade que desconhece; e a aprovação diante do sentimento de estar, ainda, excluído desse universo. O beijo pertence, de fato, a uma outra dimensão -e não existem, acredito, naves espaciais capazes de transportá-lo para lá antes do tempo.

coelhofsp@uol.com.br


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