São Paulo, sexta-feira, 18 de fevereiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA
Um literário sabor de assassinato

Colunista da Folha


Está causando furor nos meios gastronômicos americanos o livro "A Taste of Murder" (Um Gosto de Assassinato, de Jo Grassman e Robert Weibezahl), uma curiosa coletânea com mais de 130 receitas fornecidas por autores contemporâneos de livros de mistério.
Há, entre eles, vários autores publicados no Brasil -como Sue Grafton ("A de Álibi"), John Lescroart ("Prova Material"), Richard Patterson ("Grau de Culpa"), Tony Hillerman ("Ladrões do Tempo"). Entre as receitas (que cada autor relaciona com uma obra ou personagem), há vários interregnos bem-humorados, com instruções culinárias cheias de trocadilhos.
Qual a relação entre culinária e assassinato? A capa do livro dá uma pista, com seu close de um bolo de chocolate, um faca de chef e gotas de uma calda vermelha...
O chocolate, um vício de muitos gulosos, que seriam capazes de morrer por uma dentada -ou morrer de tanto comer. E a faca, que vem a ser o segundo mais importante instrumento do cozinheiro (o primeiro é a mão), sendo também instrumento primordial do grande assassino. Pois, ao contrário de balas disparadas à distância ou de venenos que matam ao longe, o assassino completo mata com as próprias mãos, nuas ou com a arma branca.
"No caso do meu personagem, o delegado Espinosa, ele é o avesso de um Nero Wolfe, o clássico detetive gourmet de Rex Stout", diz Luiz Alfredo Garcia-Roza, autor dos romances policiais "O Silêncio da Chuva", "Achados e Perdidos" e "Vento Sudoeste". "Espinosa é um solitário, que vive sozinho e come mal, uma comida péssima, congelada."
Autor também de oito livros de psicanálise e filosofia, ele não vê relações diretas entre a comida e o crime, mas lembra que comer é assimilar um objeto por meio de sua destruição. "Talvez os canibais levassem esse processo até o fim, matando para comer. Quando o fazem, é para receber as qualidades do inimigo; comem porque é bom; jamais comeriam um inimigo congelado."
Nem todo personagem de livros de mistério é gourmet e nem todos os autores cozinham ou comem bem. Há gourmets como Luis Fernando Verissimo (autor de "Clube dos Anjos"), que comem muito, mas não entra na cozinha. "Não sei nem esquentar água", diz, ao contrário de seu personagem Lucidio, o exímio cozinheiro que mata em série pela boca.
"Existe uma convenção literária que identifica personagens de romances policiais com a comida: quanto mais sofisticado o policial ou o criminoso, mais sofisticada sua comida", diz Verissimo. Para ele, quem leva às últimas consequências essa relação é o personagem do livro "Gula", de John Lanchester, no qual o assassino é um esnobe e um cozinheiro.
Já Patrícia Melo ("Acqua Toffana", "O Matador" e "Elogio da Mentira") adora cozinhar -ao contrário de seus criminosos ficcionais, que não revelam pendores pela mesa nem pela cozinha.
"Mas, quando Nina Horta comentou "Acqua Toffana", observei que a terminologia utilizada pelo assassino pode ter muito a ver com a culinária: cortar, furar, picar são verbos que podem ter um grande conteúdo agressivo", diz ela. "Percebi que uso mesmo muito essa terminologia; devo ter um assassino interior", brinca.
Entre as referências de vários autores, está o escritor espanhol Manuel Vasquez Montalban, citado por Patrícia. Mais especificamente Pepe Carvalho, um detetive particular que, à mesa, poderia lembrar um personagem brasileiro: o detetive Remo Bellini, dos livros de Tony Bellotto.
Guitarrista do grupo Titãs, Bellotto é autor de "Bellini e a Esfinge" e "Bellini e o Demônio". Pepe Carvalho é pobre, não tem grande sofisticação, mas gosta de comer bem: não deixa de tomar um vinho branco razoável com uma consistente sopa de peixe sempre que a fome o assalta.
Como ele, o Bellini de Bellotto não tem dinheiro para esbanjar, mas, mesmo sem o estofo gastronômico de seu colega espanhol, gosta de apreciar os acepipes que encara, simples que sejam -como o sanduíche de salame com provolone com um chope.
"Acho que existe na literatura policial uma relação entre o assassinato e a comida. São temas essenciais e extremos da existência", diz Bellotto. "Também em clássicos como Georges Simenon há muitas referências à comida. Elas dão sabor ao relato e tornam os livros mais gostosos de ler."
(JOSIMAR MELO)

Livro: A Taste of Murder Autores: Jo Grassman e Robert Weibezahl Editora: Dell Trade Quanto: US$ 10,47 (262 págs) Onde comprar: www.amazon.com

Texto Anterior: Netvox - Maria Ercilia: A Internet pula fora do computador
Próximo Texto: Resenhas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.