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MARCELO COELHO
Produtos para todos os desgostos
Todo mundo em São Paulo
reclama de não poder mais
ver os amigos, de passar a maior
parte do tempo entre a casa e o
trabalho, de furar todo tipo de
compromisso. Não conseguimos
cultivar nossas amizades e sentimos culpa com isso.
Combinei de almoçar com um
amigo na semana passada, num
restaurante não muito longe de
casa. Esqueci que teria de passar
perto de uma das novas obras da
Prefeitura -o túnel entre a Rebouças e a Faria Lima. Tínhamos
marcado à uma da tarde; só cheguei lá às duas. O amigo tinha um
compromisso marcado para as
três. Saímos depressa do restaurante; ele ia se atrasar, a tarde já
estava quase perdida, arrematamos nossa conversa enquanto ele
procurava o carro no estacionamento e ficamos de combinar outro almoço um dia desses.
Nosso descaso com os amigos
talvez não seja tão reprovável assim. Pode ser resultado de uma legítima e humaníssima preguiça;
qualquer deslocamento, numa cidade como São Paulo, tornou-se
penoso demais, e gastamos mais
tempo no trânsito do que naquilo
que íamos fazer quando saímos
de casa.
Obras para melhorar o trânsito
de São Paulo são notoriamente
inúteis -pelo menos se dizia isso
quando o inimigo político era
Maluf. Mas os tempos são outros,
o PT tornou-se um partido bastante moderado e, de minha parte, à medida que envelheço vou
flertando com propostas cada vez
mais radicais.
Será? Leio o mais recente lançamento da editora Conrad, dentro
da sua temível coleção Baderna.
É uma coletânea de artigos intitulada "Apocalipse Motorizado"
-uma violenta crítica ao uso do
automóvel, organizada por Ned
Ludd.
Num texto do livro, André Gorz
faz um raciocínio interessante: o
carro, diz ele, é como uma mansão à beira-mar. "Só é desejável e
vantajoso a partir do momento
em que a massa não dispõe de
um. Isso se deve ao fato de que,
tanto em sua concepção quanto
na sua finalidade original, o carro é um bem de luxo. E o luxo, por
definição, é impossível de ser democratizado: se todos ascendem
ao luxo, ninguém tira proveito
dele."
Acaba-se com a rede ferroviária, destrói-se o meio ambiente,
cria-se uma demanda insaciável
por petróleo, ocupam-se altas
porcentagens de área urbana com
estacionamentos, estradas, viadutos, para que afinal a velocidade média de circulação numa cidade seja inferior à de quem anda
de bicicleta.
Desconfio um pouco desse tipo
de cálculo, mas aqui vai o raciocínio de outro autor, o ultra-radical
Ivan Illich: "O americano típico
consagra mais de 1.600 horas por
ano ao seu automóvel: sentado
dentro dele, andando ou parado,
trabalhando para pagá-lo e para
pagar a gasolina, os pneus, o pedágio, o seguro, as multas e os impostos (...) Essas 1.600 horas lhe
servem para fazer 10 mil quilômetros de caminho, ou seja, 6 quilômetros em uma hora. É exatamente o mesmo nos países que
não possuem indústria de transporte".
Ivan Illich acha preferível a situação de um camponês peruano,
que todo mês gasta três dias de
marcha para levar um porco até o
mercado e depois volta para sua
cabana sem risco de atropelar ou
de ser atropelado, do que a do
americano, que perde comparativamente mais tempo de vida a
serviço da tirania automobilística.
Talvez o melhor fosse comer o
porco em casa mesmo, sem levá-lo ao mercado; ou, quem sabe,
deixá-lo vivo, para felicidade de
todos. Mas não precisamos enveredar por hipóteses tão longínquas. Uma questão interessante,
levantada num artigo assinado
por "Mr. Social Control", é por
que as pessoas continuam fascinadas pelos carros, quando seu
uso se torna cada vez mais irracional.
Não devemos perguntar, diz o
militante inglês, como a sociedade tolera a matança anual de 5
mil pessoas na Grã-Bretanha e de
um milhão de pessoas no mundo
em função de desastres automobilísticos, "mas, sim, perguntar:
como uma sociedade de motoristas tolera qualquer outra coisa?
Para nós, essa matança é um dos
muitos inconvenientes do carro.
Para você, motorista, é uma das
muitas vantagens. É o risco de dirigir que torna esse ato excitante
para você (...). Dirigir não é a única coisa que você faz sem um supervisor olhando sobre o seu ombro? Não é a única coisa que você
faz, nos seus próprios termos, para você mesmo? Não é o único
momento que você tem para você
mesmo?".
De fato, essa sensação de autonomia, de encapsulamento, de
potência e de agressividade é um
dos prazeres de dirigir. Os manifestantes anticarro estão tratando
de inventar outros prazeres: o da
"massa crítica", por exemplo.
Trata-se de reunir um número
suficiente de ciclistas num cruzamento para poder atravessá-lo "à
força", sem esperar pelo semáforo, num exercício oceânico de poder coletivo.
Metáfora, sem dúvida, da grande revolução com que se sonhou
um dia. As lutas específicas contra o automóvel não deixam de se
voltar, entretanto, contra o sistema capitalista global; pega-se o
inimigo por um de seus incontáveis chifres. Há os que militam
contra o hambúrguer, a indústria
farmacêutica, a televisão, o turismo de massas: a sociedade de
consumo oferece produtos para
todos os desgostos.
Seria fácil ironizar esses movimentos e estigmatizá-los como
adversários do progresso. Claramente, se existe algo de arcaico
nisso tudo é o próprio automóvel.
Seria contudo escorraçado o prefeito que decretasse um ou dois
dias de rodízio obrigatório em
São Paulo. E, se é para pensar em
quem paga R$ 20 mil de IPTU, como lembrou a prefeita em gafe recente, melhor investir em heliportos do que em túneis e viadutos
-essas vulgaridades malufistas.
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