São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

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MARCELO COELHO

Produtos para todos os desgostos

Todo mundo em São Paulo reclama de não poder mais ver os amigos, de passar a maior parte do tempo entre a casa e o trabalho, de furar todo tipo de compromisso. Não conseguimos cultivar nossas amizades e sentimos culpa com isso.
Combinei de almoçar com um amigo na semana passada, num restaurante não muito longe de casa. Esqueci que teria de passar perto de uma das novas obras da Prefeitura -o túnel entre a Rebouças e a Faria Lima. Tínhamos marcado à uma da tarde; só cheguei lá às duas. O amigo tinha um compromisso marcado para as três. Saímos depressa do restaurante; ele ia se atrasar, a tarde já estava quase perdida, arrematamos nossa conversa enquanto ele procurava o carro no estacionamento e ficamos de combinar outro almoço um dia desses.
Nosso descaso com os amigos talvez não seja tão reprovável assim. Pode ser resultado de uma legítima e humaníssima preguiça; qualquer deslocamento, numa cidade como São Paulo, tornou-se penoso demais, e gastamos mais tempo no trânsito do que naquilo que íamos fazer quando saímos de casa.
Obras para melhorar o trânsito de São Paulo são notoriamente inúteis -pelo menos se dizia isso quando o inimigo político era Maluf. Mas os tempos são outros, o PT tornou-se um partido bastante moderado e, de minha parte, à medida que envelheço vou flertando com propostas cada vez mais radicais.
Será? Leio o mais recente lançamento da editora Conrad, dentro da sua temível coleção Baderna. É uma coletânea de artigos intitulada "Apocalipse Motorizado" -uma violenta crítica ao uso do automóvel, organizada por Ned Ludd.
Num texto do livro, André Gorz faz um raciocínio interessante: o carro, diz ele, é como uma mansão à beira-mar. "Só é desejável e vantajoso a partir do momento em que a massa não dispõe de um. Isso se deve ao fato de que, tanto em sua concepção quanto na sua finalidade original, o carro é um bem de luxo. E o luxo, por definição, é impossível de ser democratizado: se todos ascendem ao luxo, ninguém tira proveito dele."
Acaba-se com a rede ferroviária, destrói-se o meio ambiente, cria-se uma demanda insaciável por petróleo, ocupam-se altas porcentagens de área urbana com estacionamentos, estradas, viadutos, para que afinal a velocidade média de circulação numa cidade seja inferior à de quem anda de bicicleta.
Desconfio um pouco desse tipo de cálculo, mas aqui vai o raciocínio de outro autor, o ultra-radical Ivan Illich: "O americano típico consagra mais de 1.600 horas por ano ao seu automóvel: sentado dentro dele, andando ou parado, trabalhando para pagá-lo e para pagar a gasolina, os pneus, o pedágio, o seguro, as multas e os impostos (...) Essas 1.600 horas lhe servem para fazer 10 mil quilômetros de caminho, ou seja, 6 quilômetros em uma hora. É exatamente o mesmo nos países que não possuem indústria de transporte".
Ivan Illich acha preferível a situação de um camponês peruano, que todo mês gasta três dias de marcha para levar um porco até o mercado e depois volta para sua cabana sem risco de atropelar ou de ser atropelado, do que a do americano, que perde comparativamente mais tempo de vida a serviço da tirania automobilística.
Talvez o melhor fosse comer o porco em casa mesmo, sem levá-lo ao mercado; ou, quem sabe, deixá-lo vivo, para felicidade de todos. Mas não precisamos enveredar por hipóteses tão longínquas. Uma questão interessante, levantada num artigo assinado por "Mr. Social Control", é por que as pessoas continuam fascinadas pelos carros, quando seu uso se torna cada vez mais irracional.
Não devemos perguntar, diz o militante inglês, como a sociedade tolera a matança anual de 5 mil pessoas na Grã-Bretanha e de um milhão de pessoas no mundo em função de desastres automobilísticos, "mas, sim, perguntar: como uma sociedade de motoristas tolera qualquer outra coisa? Para nós, essa matança é um dos muitos inconvenientes do carro. Para você, motorista, é uma das muitas vantagens. É o risco de dirigir que torna esse ato excitante para você (...). Dirigir não é a única coisa que você faz sem um supervisor olhando sobre o seu ombro? Não é a única coisa que você faz, nos seus próprios termos, para você mesmo? Não é o único momento que você tem para você mesmo?".
De fato, essa sensação de autonomia, de encapsulamento, de potência e de agressividade é um dos prazeres de dirigir. Os manifestantes anticarro estão tratando de inventar outros prazeres: o da "massa crítica", por exemplo. Trata-se de reunir um número suficiente de ciclistas num cruzamento para poder atravessá-lo "à força", sem esperar pelo semáforo, num exercício oceânico de poder coletivo.
Metáfora, sem dúvida, da grande revolução com que se sonhou um dia. As lutas específicas contra o automóvel não deixam de se voltar, entretanto, contra o sistema capitalista global; pega-se o inimigo por um de seus incontáveis chifres. Há os que militam contra o hambúrguer, a indústria farmacêutica, a televisão, o turismo de massas: a sociedade de consumo oferece produtos para todos os desgostos.
Seria fácil ironizar esses movimentos e estigmatizá-los como adversários do progresso. Claramente, se existe algo de arcaico nisso tudo é o próprio automóvel. Seria contudo escorraçado o prefeito que decretasse um ou dois dias de rodízio obrigatório em São Paulo. E, se é para pensar em quem paga R$ 20 mil de IPTU, como lembrou a prefeita em gafe recente, melhor investir em heliportos do que em túneis e viadutos -essas vulgaridades malufistas.

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