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MARCELO COELHO
Teoria do cabelo pintado
É gradual o processo de transformação de um deputado em múmia asteca, em viúva negra
O BOTOX de uma ex-prefeita, a
plástica de uma ministra, todo mundo gosta de comentar. Mas passa em silêncio um fenômeno igualmente digno de nota. Fico espantado com a quantidade de
parlamentares, do baixo e do alto
clero, que tingem os cabelos.
No baixo clero, predominam o
castanho-verniz e o vivaz acaju. O
preto, profundo ou desbotado, aparece em toda parte. Os matizes roxos
e azuis do grisalho se reservam, sem
dúvida, à elite do Legislativo. O louro-peruca é mais raro, mas existe
também.
Sempre que vejo homens de cabelo pintado, pergunto-me se eles realmente acham que estão iludindo alguém. A pergunta, no caso da maioria dos políticos, é obviamente supérflua; não só eles acham, como de
fato estão iludindo o eleitorado.
Imagino também, por outro lado,
que são eles próprios os iludidos. A
conversa de um barbeiro, os elogios
da família, o próprio espelho... tudo
convence aquele septuagenário de
que o castanho lhe cai bem.
Desse modo, é gradual o processo
de transformação de um deputado
em personagem "draculesco", em
múmia asteca, em viúva negra. No
começo, cabe apenas um retoque
pictórico aqui e ali, um pouco de lápis na suspeita de uma cã.
É com o tempo que se configura o
retrato de Dorian Gray. Desistir da
pintura, passar subitamente ao
branco, é coisa apenas para os mais
audazes entre eles. De branco, basta
o colarinho.
Creio que o mesmo se dá no processo de corrupção. Poucos nascem
corruptos, como diria Simone de
Beauvoir: tornam-se corruptos com
o tempo.
Um favor ocasional leva a outro; o
mais honesto dos homens terá de
resistir ferozmente ao assédio de
corruptores que, certamente, dispõem de técnicas e argumentos para
convencê-lo de que não está fazendo
nada de tão errado assim.
Sem dúvida, pintar o cabelo não é
sinônimo de corrupção. Cabelos honestamente brancos podem até disfarçar negociatas ostentosas. E cabelos flamejantes podem ser apenas
um sinal de vaidade.
Engana-se, aliás, quem pensa que
a vaidade é uma coisa só. Há o vaidoso que vive de criar inimizades com
os demais, e há o vaidoso que é um
gênio do altruísmo. Um se deixa seduzir pela imagem de que é odiado:
elimina os rivais do seu caso de
amor. Outro se dedica a ser amado:
se todos o amam, por que não poderia amar-se também?
Revelam-se vários tipos de vaidade, conforme o gênero de tintura de
cabelo que se usa. Há, por exemplo,
o tipo maquiavélico e racional, que
deixa brancas as costeletas e algumas madeixas parietais, enquanto o
resto reluz num negro de Edgar
Allan Poe. Sugere-se, com isso, que o
cabelo não está pintado: se estivesse,
por que razão teriam sido deixadas
brancas algumas áreas igualmente
pintáveis?
O artifício assemelha-se a certos
comportamentos usuais nas Comissões Parlamentares de Inquérito: se
eu fosse corrupto mesmo, não teria
aceitado apenas o presentinho que
vocês estão investigando. Teria recebido muito mais.
Há também a pintura variável, o
tingimento hesitante: um dia, eis o
parlamentar no esplendor da sua
glória castanha. Algumas semanas
depois, o cabelo quase se resigna ao
império da fisiologia. Volta em seguida, na mais compenetrada e funérea escuridão.
O pragmatismo de alguns faz contraste com a teimosia inabalável, diríamos quase ideológica, com que
outros veteranos do parlamento exibem, esmaltada em brilhantina, a
mesma cor capilar de 30 ou 40 anos
atrás. Seríamos tentados a ver nisso
um verdadeiro milagre, não estivesse o termo em desuso nestes tempos
de descrença.
Entretenho-me com estas especulações, mas não gostaria que se
mantivessem no registro único do
desdém. Podemos nos impacientar
quando velhos políticos exageram
na arte da dissimulação, e surgem fisicamente como um emblema de
suas próprias contradições ideológicas, rosto idoso e cabelos juvenis.
Ao mesmo tempo, exercem um
papel. São fatores de estabilidade
institucional. Fossem menos sinuosas as suas atitudes, mais rígidas as
suas convicções, o potencial de atritos na sociedade brasileira cresceria
imensamente.
Vale o risco? Não sei. Já achei que
sim. Mas foi numa época em que eu
não tinha tantos cabelos brancos.
coelhofsp@uol.com.br
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