São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

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MARCELO COELHO

Teoria do cabelo pintado

É gradual o processo de transformação de um deputado em múmia asteca, em viúva negra

O BOTOX de uma ex-prefeita, a plástica de uma ministra, todo mundo gosta de comentar. Mas passa em silêncio um fenômeno igualmente digno de nota. Fico espantado com a quantidade de parlamentares, do baixo e do alto clero, que tingem os cabelos.
No baixo clero, predominam o castanho-verniz e o vivaz acaju. O preto, profundo ou desbotado, aparece em toda parte. Os matizes roxos e azuis do grisalho se reservam, sem dúvida, à elite do Legislativo. O louro-peruca é mais raro, mas existe também.
Sempre que vejo homens de cabelo pintado, pergunto-me se eles realmente acham que estão iludindo alguém. A pergunta, no caso da maioria dos políticos, é obviamente supérflua; não só eles acham, como de fato estão iludindo o eleitorado.
Imagino também, por outro lado, que são eles próprios os iludidos. A conversa de um barbeiro, os elogios da família, o próprio espelho... tudo convence aquele septuagenário de que o castanho lhe cai bem.
Desse modo, é gradual o processo de transformação de um deputado em personagem "draculesco", em múmia asteca, em viúva negra. No começo, cabe apenas um retoque pictórico aqui e ali, um pouco de lápis na suspeita de uma cã.
É com o tempo que se configura o retrato de Dorian Gray. Desistir da pintura, passar subitamente ao branco, é coisa apenas para os mais audazes entre eles. De branco, basta o colarinho.
Creio que o mesmo se dá no processo de corrupção. Poucos nascem corruptos, como diria Simone de Beauvoir: tornam-se corruptos com o tempo.
Um favor ocasional leva a outro; o mais honesto dos homens terá de resistir ferozmente ao assédio de corruptores que, certamente, dispõem de técnicas e argumentos para convencê-lo de que não está fazendo nada de tão errado assim.
Sem dúvida, pintar o cabelo não é sinônimo de corrupção. Cabelos honestamente brancos podem até disfarçar negociatas ostentosas. E cabelos flamejantes podem ser apenas um sinal de vaidade.
Engana-se, aliás, quem pensa que a vaidade é uma coisa só. Há o vaidoso que vive de criar inimizades com os demais, e há o vaidoso que é um gênio do altruísmo. Um se deixa seduzir pela imagem de que é odiado: elimina os rivais do seu caso de amor. Outro se dedica a ser amado: se todos o amam, por que não poderia amar-se também?
Revelam-se vários tipos de vaidade, conforme o gênero de tintura de cabelo que se usa. Há, por exemplo, o tipo maquiavélico e racional, que deixa brancas as costeletas e algumas madeixas parietais, enquanto o resto reluz num negro de Edgar Allan Poe. Sugere-se, com isso, que o cabelo não está pintado: se estivesse, por que razão teriam sido deixadas brancas algumas áreas igualmente pintáveis?
O artifício assemelha-se a certos comportamentos usuais nas Comissões Parlamentares de Inquérito: se eu fosse corrupto mesmo, não teria aceitado apenas o presentinho que vocês estão investigando. Teria recebido muito mais.
Há também a pintura variável, o tingimento hesitante: um dia, eis o parlamentar no esplendor da sua glória castanha. Algumas semanas depois, o cabelo quase se resigna ao império da fisiologia. Volta em seguida, na mais compenetrada e funérea escuridão.
O pragmatismo de alguns faz contraste com a teimosia inabalável, diríamos quase ideológica, com que outros veteranos do parlamento exibem, esmaltada em brilhantina, a mesma cor capilar de 30 ou 40 anos atrás. Seríamos tentados a ver nisso um verdadeiro milagre, não estivesse o termo em desuso nestes tempos de descrença.
Entretenho-me com estas especulações, mas não gostaria que se mantivessem no registro único do desdém. Podemos nos impacientar quando velhos políticos exageram na arte da dissimulação, e surgem fisicamente como um emblema de suas próprias contradições ideológicas, rosto idoso e cabelos juvenis.
Ao mesmo tempo, exercem um papel. São fatores de estabilidade institucional. Fossem menos sinuosas as suas atitudes, mais rígidas as suas convicções, o potencial de atritos na sociedade brasileira cresceria imensamente.
Vale o risco? Não sei. Já achei que sim. Mas foi numa época em que eu não tinha tantos cabelos brancos.

coelhofsp@uol.com.br


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