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São Paulo, terça-feira, 18 de março de 2003

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O rei da boca

27.mar.1963/"Última Hora"
Hiroito tem bolsos esvaziados em delegacia em 63; na mesa, jornal com a manchete: "Ordem do dia na polícia: deitar mãos em Hiroito!"



"Lenda do crime" de São Paulo, Hiroito Joanides descreve a marginalidade da cidade em best-seller


IVAN FINOTTI
DA REPORTAGEM LOCAL

Qualquer um que, por volta de 1960, andasse sobre os paralelepípedos das vielas mal iluminadas da Boca do Lixo, região central de São Paulo, e desse de cara com um homem chamado Hiroito de Moraes Joanides, certamente respiraria aliviado.
Ali estava uma figura franzina, míope, com óculos fundo de garrafa, terninho mal-ajambrado, cabelos ralos, voz fina e talvez com um livro de Baudelaire ou Heidegger debaixo do braço. Um inofensivo professor universitário, podia-se pensar.
Pois um estudante, certo dia, pensou exatamente isso e resolveu folgar com o homenzinho. Saiu no lucro, apenas um tiro no pé. "Foi a única pessoa de vida honesta que cheguei a ferir em toda a minha vida", escreveria Joanides em 1977, no livro "Boca do Lixo", esgotado há pelo menos duas décadas e que chega de volta às livrarias no fim deste mês.
A despeito de sua figura, Hiroito Joanides (1936-92) foi um dos mais importantes personagens dos jornais sensacionalistas entre os anos 50 e 60. Era "o rei da Boca", segundo apelido dado na época pelo extinto jornal "Notícias Populares" (que pertenceu ao Grupo Folha entre 1965 e 2001).
Foi matador de rivais (o primeiro tomou sete tiros), espancador de prostitutas (que haviam colocado fogo numa concorrente), explorador do lenocínio (vendendo proteção e cobrando diárias), traficante e usuário de drogas (maconha, cocaína e bolinhas), dono de uma ficha policial de 20 metros (jornais da época falam em 172 passagens pelas delegacias) e, finalmente, acusado de parricídio (pela morte do pai), o único dos crimes que ele nega: "calúnia infamante", escreve.
Rei do submundo até ser preso por 12 anos, na metade dos anos 60, Hiroito Joanides virou uma espécie de lenda ao escrever seu relato como chefe da malandragem paulistana. O livro foi escrito no período de prisão e virou um best-seller em 1977, ao vender 23 mil exemplares.
O ineditismo do assunto e a qualidade da escrita (Joanides parou no ginásio, mas seguiu lendo) chamaram a atenção para o criminoso.
No final dos anos 70, foi convidado para dar palestras em duas dúzias de universidades (a Faculdade de Ciências Sociais da USP foi a primeira) e foi o entrevistado de uma edição do prestigioso "Vox Populi", da TV Cultura.
Mais do que relatar sua vida, Joanides descreve, com requintes da violência de Martin Scorsese, a dinâmica da marginalidade da época na Boca do Lixo, ou o Quadrilátero do Pecado, para os íntimos. Compreendia mais ou menos a região entre as ruas do Triunfo, as avenidas São João e Duque de Caxias, o largo General Osório e a praça Júlio Mesquita.
"Fomos os chamados reis (e quanta e triste ironia aqui se esconde nesse título!) do submundo, os ídolos caseiros e rasteiros da população constituída pelos desajustados sociais", escreve, para em seguida passar a descrever como agia e vivia toda a sorte de párias, vagabundos, assassinos, punguistas, meretrizes e ainda os ladrões que viviam exclusivamente de roubar outros ladrões.
"Boca do Lixo" não é exatamente uma autobiografia. Joanides, afinal, gasta páginas e páginas com sua teorias de reinserção social ou os motivos de por que a Boca se expandiu por toda São Paulo. Mas não deixa de explicar as razões de ter entrado no submundo, que passou a frequentar ainda aos 17, atrás de sexo pago.
O autor atribui à morte do pai, esfaqueado 40 vezes em seu apartamento, a razão de sua virada. Inocentado do parricídio aos olhos da lei, nunca mais foi aceito pelos familiares, amigos e vizinhos. "E retornei ao único lugar onde me faziam aceito, onde a pecha que carregava não era de molde a fazer com que me evitassem. Retornei para delinquir."
Paranaense de Morretes, Hiroito chegou a São Paulo em 1948, aos 12 anos. De japonês, só tinha o nome, em homenagem ao imperador. Teve uma vida normal antes da morte do pai, com formação familiar religiosa.
Foi office-boy, auxiliar de contabilidade e chegou a gerente de supermercado. Morreu em 92, em São Paulo.
E deixou a seguinte conclusão: "O crime compensa, é claro, mas não para os criminosos. Também a tuberculose compensa... para proprietários, diretores, médicos, e serventes de sanatórios; para laboratórios farmacêuticos e fabricantes de ataúdes".


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