São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2004

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GASTRONOMIA

Bendita farinha que solta a língua!

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

As escolas públicas estão cheias de projetos dedicados à alimentação e agora percebo que as particulares também. Descobriram a comida como muito importante! Ainda bem.
Chegou às minhas mãos um trabalho feito no supletivo do colégio Santa Cruz, em São Paulo, com alunos de idade média de 21 anos (na série equivalente à sexta e sétima do ensino fundamental) no qual a professora usou o tema alimentação e suas memórias afetivas como foco de interesse, para estimulá-los a escrever com naturalidade e fluência, sabendo do poder sensorial da comida de infância. E também para relembrar as raízes e fixá-las, pois sente que se acostumam com os hábitos de São Paulo muito depressa. Registrou tudo num folheto.
Editei com selvageria, como se a lembrança de todos eles fosse a de um só, para caber no espaço desta coluna.
"Comida boa, também, era quando minha mãe ganhava neném. Era um pirão de galinha caipira bem gostoso. Quem fazia era meu pai, mas ele fazia com tanto capricho que de longe se podia sentir o cheiro daquela comida. Quando ficava pronto o pai me mandava levar a comida no quarto para a mãe. E ele já deixava a minha parte na panela. Eu voltava correndo para a cozinha e meu pai colocava um pouco de arroz naquela panela com o final do pirão. Eu pegava a panela e ia para o quarto fazer companhia para minha mãe. Não podia sentar na cama dela e ficava no chão, perto dos pés da cama.
Bom também era carne-de-sol assada na brasa e piabinhas que eu mesmo pescava no córrego. E salada de folhas de couve crua, com arroz e feijão. Minha mãe fazia cortado de abóbora com quiabo e carne de sol picada em pedacinhos e minha avó, biju de tapioca com coco moído; e ficava delicioso, puro ou com margarina e café.
Eu comia de tudo, até manga verde com sal ou açúcar. Ou leite com farinha de milho. A mãe levantava de manhã e tirava o leite da cabra, depois coava num pano e fervia numa panela. Com farinha bem torradinha e um pedaço de rapadura! Hum!
Prato bom era caranguejo servido com arroz e feijão com leite com farinha adoçado, do lado. E eu gostava quando o caranguejo tinha ova. Era uma delícia.
O prato mais delicioso ... virado de banana com queijo! Lembro-me que meu pai adorava. Mas tinha que ser com bastante queijo! Receita: oito bananas nanicas, bem maduras, três ovos, 1 « xícara de açúcar, « quilo de queijo meia cura, três copos de farinha de milho e uma pitada de sal. Primeiro colocava uma colher de óleo na panela, depois as bananas e os ovos; mexia, juntava a farinha, mexia, até misturar tudo. Em seguida, os pedaços de queijo picado e, por último, o açúcar. Mexia tudo até o queijo derreter e desgrudar um pouco da panela. Servia ainda um pouco quente.
O que me lembro do bolo de milho é que ela colocava milho no pilão e socava com a mão do pilão até que se tornasse fubá. Passava pela peneira várias vezes até obter um fubá bem fino. Depois colocava em uma panela de barro leite de coco, ovos, açúcar, cravo e canela e levava ao fogão que era de lenha, até se transformar em angu. Feito isso, colocava toda aquela massa em uma assadeira e levava ao forno de barro, que havia no fundo do quintal. Para assar. Eu me lembro que ela tirava aquela assadeira do forno e regava o bolo com leite de coco. O bolo ficava com uma casquinha dourada! Comíamos as fatias de bolo com café.
Se minha mãe ou meu pai convidassem alguém importante para almoçar na minha casa, era preciso matar um peru para satisfazer os convidados. Além do peru era preciso fazer um frango ou uma galinha caipira para fazer galinha cabidela, que é o nome do prato feito lá em Pernambuco.
A galinha a gente pegava na hora, viva, e cortava o pescoço dela e aparava o sangue em uma vasilha e reservava. Enquanto isso, preparava a galinha com vários tipos de tempero. De preferência, coentro, sal, cebola e vinagre.
Depois batia o sangue da galinha num liqüidificador e colocava por cima da galinha já na panela e misturava até o caldo ficar escuro. Feito isso, era só tampar a panela e esperar a galinha cozinhar. Depois, servir com feijão, arroz e salada. De preferência com tomatinhos pequenos, como os que a gente plantava e colhia na hora que ia comer."
Acho que a professora conseguiu o que queria, deixei para trás montes de exemplos, ninguém resiste à lembrança de um lambari sequinho passado na farinha ou fubá e frito na hora. Todos se transformam em escritores de gastronomia!

ninahort@uol.com.br


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