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"O TEMPERO DA VIDA"
Longa mostra deportação de gregos da Turquia ao mesmo tempo que passeia pela culinária de Istambul
Filme vê conflito pela ótica da gastronomia
NINA HORTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
"Em Istambul a não-existência
não existe", dizem os istambuliotas. Istambul, a mãe de todas as cidades, com seu ventre de paxá
cheio de leite de cabra, carne moída, doces especiais grudentos,
frutas secas, legumes coloridos
em conserva, almôndegas, quibes, o melhor arroz, a limonada, o
ayran. E especialmente os mézé,
as entradinhas mais elaboradas
do mundo, o melhor peixe, o raki.
A cidade do prazer e bem viver.
O filme "O Tempero da Vida"
começa em Istambul. Tudo é filtrado e observado pelos olhos castanhos, grandes e sensíveis do
menino Fanis, de sete anos,
aprendendo a viver em família e
sociedade com o pai grego, a namoradinha, a mãe e o avô turcos,
ele próprio nascido em Istambul.
É o avô, no entanto, dono de uma
lojinha de temperos e especiarias
que incendeia sua imaginação
com as aulas sobre gastronomia,
sobre a propriedade dos temperos, os sabores do estômago, os
segredos dos céus e das estrelas. A
pimenta é o Sol, a vida, o sal dá
gosto à vida, a canela é Vênus, a
mulher, doce e amarga. Os humores do corpo se combinam e interagem com o ambiente e o sobrenatural para formar o temperamento do indivíduo.
Em 1964, quando a identidade
de Fanis já se formava no ambiente saudável da família e de sua terra, 30 mil gregos são deportados
pelos turcos, carregando consigo
só os pertences pessoais. Ele, a
mãe e o pai grego são obrigados a
voltar para a Grécia, por causa de
desentendimentos políticos em
Chipre, entre turcos e cipriotas.
Descobrira sua origem, a sua essência, a sua nacionalidade através da cozinha de Istambul. A comida como metáfora, como força
para criar raízes, coisa complicada, pois é tido como grego na Turquia e turco na Grécia.
As fronteiras de um país não são
linhas riscadas num mapa protegidas por homens de uniforme.
São desenhadas com muito mais
força pela história da nação e do
mundo, pela linguagem, pelo currículo, pelos poemas e canções
que se recitam na escola.
Mas o menino turco dorme nas
aulas gregas. Só consegue se salvar na cozinha, sua pátria é a cozinha, convivendo com as tias e superando-as, como cozinheiro dotado que é. A família se assusta
com seu dom, suas maravilhosas
berinjelas recheadas, cozinha não
é coisa para homem, reduto eterno das mulheres, o menino está
doente, o menino tem problemas... e ele e o pai são chamados à
escola para conversar com a professora que proíbe a criança de estudar junto ao fogão, pois os aromas o distraem da Grécia e o remetem à Turquia. A cozinha se fecha à chave, literalmente, para ele.
O filme a estas alturas já citou
Fellini, no comportamento da família, homenageou "Tampopo",
com a mãe dando de mamar ao filho guloso, lembrou-se de Woody
Allen sendo repreendido pelo rabino, copia "Como Água para
Chocolate", quando o protagonista separa o tio de uma noiva indesejável através da comida, além
de ter um fim de realismo mágico.
Finalmente vemos o protagonista quarentão, moldado pelas lições do avô, pelas especiarias e astronomia. Ótimo cozinheiro e
professor de astrofísica, volta para
Istambul para dar ordem aos retalhos da infância e adolescência.
É um filme de entretenimento,
com todos os ingredientes para
agradar o público. Por incrível
que pareça faltou sal, faltou pimenta e "timing". O retrogosto é
de déjà vu. Mas, enfim, é uma
abordagem delicada, mostrando
que na realidade as semelhanças
entre os dois povos são maiores
do que as dissidências, todos girando sob o mesmo sol salpicado
de sal e pimenta.
O Tempero da Vida
Politiki Kouzina
Direção: Tassos Boulmetis
Produção: Grécia/Turquia, 2003
Com: Georges Corraface, Ieroklis
Michaelidis, Renia Louizidou
Quando: a partir de hoje no Espaço
Unibanco, Frei Caneca Unibanco
Arteplex e Sala UOL
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