São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 2005

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"O TEMPERO DA VIDA"

Longa mostra deportação de gregos da Turquia ao mesmo tempo que passeia pela culinária de Istambul

Filme vê conflito pela ótica da gastronomia

NINA HORTA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"Em Istambul a não-existência não existe", dizem os istambuliotas. Istambul, a mãe de todas as cidades, com seu ventre de paxá cheio de leite de cabra, carne moída, doces especiais grudentos, frutas secas, legumes coloridos em conserva, almôndegas, quibes, o melhor arroz, a limonada, o ayran. E especialmente os mézé, as entradinhas mais elaboradas do mundo, o melhor peixe, o raki. A cidade do prazer e bem viver.
O filme "O Tempero da Vida" começa em Istambul. Tudo é filtrado e observado pelos olhos castanhos, grandes e sensíveis do menino Fanis, de sete anos, aprendendo a viver em família e sociedade com o pai grego, a namoradinha, a mãe e o avô turcos, ele próprio nascido em Istambul. É o avô, no entanto, dono de uma lojinha de temperos e especiarias que incendeia sua imaginação com as aulas sobre gastronomia, sobre a propriedade dos temperos, os sabores do estômago, os segredos dos céus e das estrelas. A pimenta é o Sol, a vida, o sal dá gosto à vida, a canela é Vênus, a mulher, doce e amarga. Os humores do corpo se combinam e interagem com o ambiente e o sobrenatural para formar o temperamento do indivíduo.
Em 1964, quando a identidade de Fanis já se formava no ambiente saudável da família e de sua terra, 30 mil gregos são deportados pelos turcos, carregando consigo só os pertences pessoais. Ele, a mãe e o pai grego são obrigados a voltar para a Grécia, por causa de desentendimentos políticos em Chipre, entre turcos e cipriotas.
Descobrira sua origem, a sua essência, a sua nacionalidade através da cozinha de Istambul. A comida como metáfora, como força para criar raízes, coisa complicada, pois é tido como grego na Turquia e turco na Grécia.
As fronteiras de um país não são linhas riscadas num mapa protegidas por homens de uniforme. São desenhadas com muito mais força pela história da nação e do mundo, pela linguagem, pelo currículo, pelos poemas e canções que se recitam na escola.
Mas o menino turco dorme nas aulas gregas. Só consegue se salvar na cozinha, sua pátria é a cozinha, convivendo com as tias e superando-as, como cozinheiro dotado que é. A família se assusta com seu dom, suas maravilhosas berinjelas recheadas, cozinha não é coisa para homem, reduto eterno das mulheres, o menino está doente, o menino tem problemas... e ele e o pai são chamados à escola para conversar com a professora que proíbe a criança de estudar junto ao fogão, pois os aromas o distraem da Grécia e o remetem à Turquia. A cozinha se fecha à chave, literalmente, para ele.
O filme a estas alturas já citou Fellini, no comportamento da família, homenageou "Tampopo", com a mãe dando de mamar ao filho guloso, lembrou-se de Woody Allen sendo repreendido pelo rabino, copia "Como Água para Chocolate", quando o protagonista separa o tio de uma noiva indesejável através da comida, além de ter um fim de realismo mágico.
Finalmente vemos o protagonista quarentão, moldado pelas lições do avô, pelas especiarias e astronomia. Ótimo cozinheiro e professor de astrofísica, volta para Istambul para dar ordem aos retalhos da infância e adolescência.
É um filme de entretenimento, com todos os ingredientes para agradar o público. Por incrível que pareça faltou sal, faltou pimenta e "timing". O retrogosto é de déjà vu. Mas, enfim, é uma abordagem delicada, mostrando que na realidade as semelhanças entre os dois povos são maiores do que as dissidências, todos girando sob o mesmo sol salpicado de sal e pimenta.


O Tempero da Vida
Politiki Kouzina
  
Direção: Tassos Boulmetis
Produção: Grécia/Turquia, 2003
Com: Georges Corraface, Ieroklis Michaelidis, Renia Louizidou
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco, Frei Caneca Unibanco Arteplex e Sala UOL


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