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CARLOS HEITOR CONY
A face da festa
Tem vinte e três anos. Às vezes, parece ter menos. É magrinha, mas muito bem-feita de
corpo. Mora longe, sei que dá duro para chegar ao trabalho, imagino que, quando volta para casa,
às vezes tarde, indo em silêncio,
no meio da noite, volta para um
mundo que não é dela, nunca foi
dela, nada parece mais dela, afinal, qual é a dela? Não me sinto
confortável quando penso nisso:
qual é a dela? A primeira constatação é simples: a dela é viver, ter
direito à vida, à alegria e, a longo
prazo, a um futuro.
Talvez seja menos complicada
do que parece, mas o que me parece é apenas aquilo que ela me
mostra e o que todos mostramos
uns aos outros: a face da festa, do
trabalho, dos compromissos. Lá
dentro permanece, intacta, já
maltratada pelo tempo, 23 séculos ou 23 anos, a esfinge que não
decifro.
Tampouco ela me decifra e
muito menos eu a devoro: também para ela mostro a face da festa, o homem escuro e solitário em
que a vida me transformou e eu
ajudei bastante nessa transformação -contra a vontade, em
parte, em parte a favor da minha
vontade. Como tudo que termina
empatado, nem triunfo nem derrota.
Mas a moça tem 23 anos e me
surpreende. Estudou bastante, dá
a impressão de que estudou tudo,
inclusive o que não existe, como a
herança que recebemos da estrela
da Ursa Maior, lê muito e tem
gosto estranho, não parece um espécime da safra de Ipanema, série
PUC, lote Bracarense. Não lê os
segundos jornais da vida, na TV
só se amarra naquele canal dedicado aos bichos, não deve saber
quem é quem na novela das oito a
que não assiste, e não sabe distinguir um samba de Chico Buarque
de um outro do Zeca Pagodinho.
Nascida, criada e vivida na zona sul, em frente ao mar de Ipanema, chorou no dia em que os
sorvetes do Moraes acabaram,
mas nunca se anestesiou pelos valores, conceitos e preconceitos da
grande taba que vai da praça General Osório ao Jardim de Alá.
Muitas vezes se surpreende perguntando a si mesma: o que estou
fazendo aqui? Uma tarde, entrou
na fila do cinema Leblon e um cara moreno sorriu para ela, ofereceu pagar-lhe a entrada, tinha a
voz macia, um charme desgraçado. Ela aceitou a entrada, mas, lá
dentro, inventou que ia se encontrar com uma colega no andar de
cima e se mandou. Somente mais
tarde, duas ou três semanas depois, viu um pôster na rua com
aquela cara morena, o charme
desgraçado e ficou sabendo que
quem lhe pagara o cinema naquele dia fora Caetano Veloso.
A moça de 23 anos pensa por si
própria e consigo própria. Um dia
a chamei de menina, carinhosamente, e ela reagiu, dizendo que
não gostava. Gostei da reação dela e nunca mais a chamei de menina, nem de criança, não a chamarei, jamais, de nome algum, de
modo algum, na verdade, não
preciso chamá-la para tê-la, ao
meu modo, "my way". Ela é
maior e melhor do que qualquer
nome ou do que qualquer chamado. Assombrosa a sua capacidade
de ser e estar sem necessidade
nem mesmo de ser alguma coisa
ou de estar em algum lugar.
Às vezes me assusta. É uma moça pobre, que trabalha por necessidade até o dia em que trabalhará de verdade, fazendo o que gosta e pode. Ou não trabalhará,
quando descobrir a verdade do
não fazer nada e deixar as coisas,
o tempo e o modo acontecerem.
Na selva do mercado, seus valores são pequenos ainda, "ela está
começando", é assim que os mais
idosos e os mais conformados
pensam dela quando pensam nela. Mas eu tenho uma suspeita:
ela não está começando, começou
há muito, apenas aguarda o momento, o instante de fera, o momento do grito. Tanto a fera como o grito estão dentro dela, mas
quem guarda a chave da jaula do
tempo e da fera é ela. Resulta numa espera fastidiosa que, às vezes,
a maltrata, às vezes a diverte
-mas ela vai levando. O ideal seria queimar etapas, dar um pulo
na vida e na carne e amanhecer
outra moça, ou a mesma moça,
com fome maior e mais funda.
Eu tenho certeza de que um dia
esse momento será e virá. Acredito tanto nisso que já me habituei
a pensar: "No dia em que ela for
assim".
Ela ignora que eu penso nesse
"assim" e, mesmo que soubesse,
nada faria para ser exatamente
"assim". Sou uma peça da engrenagem adulta e viciada que a tritura, tornando-a bagaço cotidiano que nada mais pode dar ou lucrar -sim, o mercado tem suas
leis e regras, e fugir delas é violar o
pacto sinistro que regula o mundo e que, mundo e regra, também
nos regula.
Se um dia ela chegar e avisar:
"Olha, amanhã não virei mais
porque vou partir para Viena ou
Veneza"... sim, há que me habituar ao inesperado, e eu já tanto
me habituei aos tantos da vida
que não teria motivo algum para
cair e rolar pelo chão, molhando
com o meu pranto inútil as calçadas do mundo. Sim, um dia ela
partirá e será feliz, vejo-a num retângulo de janela, ao pôr-do-sol,
olhando o mundo que foi por ela
e para ela.
Sim, será feliz. Mas aí a bolha
de sabão desaparece no ar e ela se
descobrirá outra vez à minha
frente, está na minha frente, simples, conformada e má: a face da
festa acabou.
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