São Paulo, sexta-feira, 18 de março de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

A face da festa

Tem vinte e três anos. Às vezes, parece ter menos. É magrinha, mas muito bem-feita de corpo. Mora longe, sei que dá duro para chegar ao trabalho, imagino que, quando volta para casa, às vezes tarde, indo em silêncio, no meio da noite, volta para um mundo que não é dela, nunca foi dela, nada parece mais dela, afinal, qual é a dela? Não me sinto confortável quando penso nisso: qual é a dela? A primeira constatação é simples: a dela é viver, ter direito à vida, à alegria e, a longo prazo, a um futuro.
Talvez seja menos complicada do que parece, mas o que me parece é apenas aquilo que ela me mostra e o que todos mostramos uns aos outros: a face da festa, do trabalho, dos compromissos. Lá dentro permanece, intacta, já maltratada pelo tempo, 23 séculos ou 23 anos, a esfinge que não decifro.
Tampouco ela me decifra e muito menos eu a devoro: também para ela mostro a face da festa, o homem escuro e solitário em que a vida me transformou e eu ajudei bastante nessa transformação -contra a vontade, em parte, em parte a favor da minha vontade. Como tudo que termina empatado, nem triunfo nem derrota.
Mas a moça tem 23 anos e me surpreende. Estudou bastante, dá a impressão de que estudou tudo, inclusive o que não existe, como a herança que recebemos da estrela da Ursa Maior, lê muito e tem gosto estranho, não parece um espécime da safra de Ipanema, série PUC, lote Bracarense. Não lê os segundos jornais da vida, na TV só se amarra naquele canal dedicado aos bichos, não deve saber quem é quem na novela das oito a que não assiste, e não sabe distinguir um samba de Chico Buarque de um outro do Zeca Pagodinho.
Nascida, criada e vivida na zona sul, em frente ao mar de Ipanema, chorou no dia em que os sorvetes do Moraes acabaram, mas nunca se anestesiou pelos valores, conceitos e preconceitos da grande taba que vai da praça General Osório ao Jardim de Alá. Muitas vezes se surpreende perguntando a si mesma: o que estou fazendo aqui? Uma tarde, entrou na fila do cinema Leblon e um cara moreno sorriu para ela, ofereceu pagar-lhe a entrada, tinha a voz macia, um charme desgraçado. Ela aceitou a entrada, mas, lá dentro, inventou que ia se encontrar com uma colega no andar de cima e se mandou. Somente mais tarde, duas ou três semanas depois, viu um pôster na rua com aquela cara morena, o charme desgraçado e ficou sabendo que quem lhe pagara o cinema naquele dia fora Caetano Veloso.
A moça de 23 anos pensa por si própria e consigo própria. Um dia a chamei de menina, carinhosamente, e ela reagiu, dizendo que não gostava. Gostei da reação dela e nunca mais a chamei de menina, nem de criança, não a chamarei, jamais, de nome algum, de modo algum, na verdade, não preciso chamá-la para tê-la, ao meu modo, "my way". Ela é maior e melhor do que qualquer nome ou do que qualquer chamado. Assombrosa a sua capacidade de ser e estar sem necessidade nem mesmo de ser alguma coisa ou de estar em algum lugar.
Às vezes me assusta. É uma moça pobre, que trabalha por necessidade até o dia em que trabalhará de verdade, fazendo o que gosta e pode. Ou não trabalhará, quando descobrir a verdade do não fazer nada e deixar as coisas, o tempo e o modo acontecerem.
Na selva do mercado, seus valores são pequenos ainda, "ela está começando", é assim que os mais idosos e os mais conformados pensam dela quando pensam nela. Mas eu tenho uma suspeita: ela não está começando, começou há muito, apenas aguarda o momento, o instante de fera, o momento do grito. Tanto a fera como o grito estão dentro dela, mas quem guarda a chave da jaula do tempo e da fera é ela. Resulta numa espera fastidiosa que, às vezes, a maltrata, às vezes a diverte -mas ela vai levando. O ideal seria queimar etapas, dar um pulo na vida e na carne e amanhecer outra moça, ou a mesma moça, com fome maior e mais funda.
Eu tenho certeza de que um dia esse momento será e virá. Acredito tanto nisso que já me habituei a pensar: "No dia em que ela for assim".
Ela ignora que eu penso nesse "assim" e, mesmo que soubesse, nada faria para ser exatamente "assim". Sou uma peça da engrenagem adulta e viciada que a tritura, tornando-a bagaço cotidiano que nada mais pode dar ou lucrar -sim, o mercado tem suas leis e regras, e fugir delas é violar o pacto sinistro que regula o mundo e que, mundo e regra, também nos regula.
Se um dia ela chegar e avisar: "Olha, amanhã não virei mais porque vou partir para Viena ou Veneza"... sim, há que me habituar ao inesperado, e eu já tanto me habituei aos tantos da vida que não teria motivo algum para cair e rolar pelo chão, molhando com o meu pranto inútil as calçadas do mundo. Sim, um dia ela partirá e será feliz, vejo-a num retângulo de janela, ao pôr-do-sol, olhando o mundo que foi por ela e para ela.
Sim, será feliz. Mas aí a bolha de sabão desaparece no ar e ela se descobrirá outra vez à minha frente, está na minha frente, simples, conformada e má: a face da festa acabou.


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