São Paulo, sábado, 18 de março de 2006

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LIVROS

ROMANCE


É reeditado "Subúrbio", que iniciou nova fase na literatura de SP em 94

A bruta periferia de Bonassi, para além do determinismo

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Títulos de romance com uma palavra só -"Cacau" (Jorge Amado), "Maleita" (Lúcio Cardoso), "Angústia" (Graciliano Ramos), "Lapa" (Luís Martins)- têm o poder de sugerir um universo fechado, brutal, abatendo-se como uma fatalidade sobre os seus personagens.
"Subúrbio", de Fernando Bonassi (colunista da Folha), inscreve-se com brilho nessa tradição, e é numa homenagem não de todo irônica ao determinismo naturalista que o nome de Cesare Lombroso apareça na primeira página deste romance. Não como referência teórica, é claro (pois já passou o tempo de tomar o formato craniano como chave para explicar atos de delinqüência), mas como um marco geográfico: Bonassi faz menção a uma placa de rua, "quase morta de ferrugem", celebrando a memória do "emérito cientista italiano" lá pelos lados da Vila Prudente, perto da "divisa com São Caetano do Sul", onde "a fumaça da Mannesmann turva tudo".
Mesmo se paulistano, o leitor dos livros de Bonassi dificilmente transita por essas regiões, muito além dos Jardins. Nascido na Mooca, em 1962, o autor sabe disso -e faz da riqueza documental um ponto forte de "Subúrbio". Na casa do "velho" e da "velha" -personagens que ficarão sem nome ao longo do romance-, sabemos que "tinha acontecido um problema com a manilha que atravessava a cozinha de fora a fora", e que por isso a cerâmica do chão foi quebrada, e "do conserto adiado resultou uma passarela de vermelhão."
O virtuosismo detalhístico -que não recua diante da brutalidade e da escatologia- convive, nas 74 cenas curtas que compõem o livro, com um senso muito matizado da distância, do arquetípico, do exemplar. O uso peculiar de pronomes demonstrativos ("naquela manhã do tempo dessa história", por exemplo) é um dos recursos que servem para turvar, no plano da narração, aquilo que no plano descritivo se fez objeto de atenção quase microscópica.
Proximidade e repulsa, aderência e separação se fazem presentes também no clima emocional. A rotina de ódio e desprezo matrimonial apresentada na primeira parte do livro se vê superada -mas a que preço!- quando o "velho", bêbado e embrutecido, se entrega a um amor pedófilo que ambiguamente o purifica.
Publicado pela primeira vez em 1994, "Subúrbio" abriu, como diz Manuel da Costa Pinto na apresentação do livro, "uma nova fase na literatura brasileira" e também "criou um repertório de formas e temas que seriam posteriormente desenvolvidos nas diversas obras de seu autor."
A tensão entre a forma curta -no conhecido expediente bonassiano de repetir até à exaustão um mesmo molde gramatical-, e um arcabouço narrativo mais amplo persiste nesta nova edição de "Subúrbio", assim como, provavelmente, em toda a já vasta produção do autor. É o jogo entre "centro" e "periferia", "lei" e "desordem", afinal, o que move, para além do determinismo, muitos textos da "Geração 90". A supressão de vários minicapítulos que constavam da primeira edição trouxe, entretanto, mais equilíbrio ao livro, consolidando-o como uma obra-prima.


Subúrbio
    
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 39,90 (296 págs.)


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