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DRAUZIO VARELLA
Salva de palmas
Estávamos em 1964. Nos
cursinhos preparatórios para
o vestibular de medicina havia
aula todos os domingos, das sete
da manhã à uma da tarde, e aluno nenhum faltava. Contando,
parece mentira de professor: as
salas tinham mais de 300 estudantes interessados a ponto de
passarmos o ano na maioria delas sem precisar chamar-lhes a
atenção uma vez sequer.
Passei um problema de química
e virei para o quadro-negro a fim
de armar a solução enquanto a
classe em silêncio procurava resolvê-lo.
Que falta faz o quadro-negro, a
maior invenção da didática em
todos os tempos, substituída mais
tarde pela insossa projeção de slides e, posteriormente, pela praga
computadorizada que se disseminou da escola primária aos congressos de especialistas, chamada
"data-show", impessoal, capaz de
transformar mestres inspirados
em expositores sem imaginação.
No quadro-negro o giz desenha
imagens criadas em tempo real
com o raciocínio desenvolvido pelo professor, personagem central
da transmissão do conhecimento
e foco de todas as atenções. Os recursos audiovisuais modernos
projetam a informação de forma
impessoal, muitas vezes antecipadamente às palavras do expositor, de modo que a tela iluminada
compete com ele e monopoliza a
atenção da platéia. O audiovisual, método útil, porém complementar, rouba a cena do protagonista; enquanto o quadro-negro é
o palco no qual ganham vida os
pensamentos daquele que ensina.
O bom professor é um ator emocionado com o texto que pretende
ensinar. Ele procura fazê-lo de
forma obstinada, de frente para
seus discípulos, se possível em pé,
com voz firme e olhar determinado, fixo nos olhos deles para perscrutar como reagem seus espíritos
a cada palavra pronunciada. É
possível criar essa magia com um
ser falando no escuro, relegado ao
papel de coadjuvante de uma tela
de plástico na qual se desenrola a
ação?
Mas voltemos à sala do cursinho às sete da manhã. Escrevendo no quadro, de costas para os
alunos compenetrados na solução
do problema, fui surpreendido
por uma gritaria acompanhada
de assobios iguais aos das torcidas de futebol. Virei-me para a
classe, mas não havia o que justificasse tanto alvoroço; apenas
uma aluna retardatária passava
de cabeça baixa entre as fileiras
para chegar a um assento vazio.
Perguntei o que havia acontecido a um rapaz de óculos, magro,
bem alto, de nariz proeminente,
que atendia pela alcunha de Seriema, sentado na primeira fila:
-É uma louca que entrou de
calça comprida, respondeu com
naturalidade.
Em 1964, na maior cidade brasileira, quando o mundo ensaiava os primeiros passos da revolução sexual que se seguiu à descoberta da pílula, uma menina ir ao
cursinho de calça comprida num
domingo de manhã era motivo de
escândalo.
No mesmo ano, a caminho da
faculdade, vi pela janela do ônibus uma mulher com jeito de estrangeira, na calçada do Trianon,
em plena avenida Paulista, com
um cigarro no canto da boca empurrando um carrinho de bebê.
Muitas mulheres já fumavam naquele tempo, mas aquela foi a primeira que vi uma ousando fazê-lo na rua.
Relembro esses casos para falar
a respeito de uma aula dada por
mim na semana passada sobre o
tema "Saúde da Mulher", para
uma platéia de 450 mulheres, no
Dia Internacional da Mulher, organizada por uma associação de
funcionários públicos de SP.
Como parte considerável da audiência era constituída por funcionárias com mais de 40 anos,
muitas das quais aposentadas, falei sobre os agravos de saúde mais
prevalentes nessa faixa etária: hipertensão arterial, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares,
vida sedentária e sobre os problemas que a menopausa pode causar. Ao terminar, três microfones
sem fio foram colocados à disposição para dúvidas e comentários.
A primeira a se manifestar foi
uma mulher com aparência de 50
anos: queria saber o impacto da
reposição hormonal na libido na
fase de menopausa; a segunda,
perguntou por que algumas mulheres têm mais desejo sexual; a
terceira, se era normal perder o
interesse por sexo depois de 30
anos de casamento. E, por aí afora, sempre em torno da problemática sexual.
Foram tantas as questões nessa
linha, que comentei em tom de
brincadeira:
-Em matéria de saúde, esse é o
único tema que interessa às senhoras?
Foi uma risada geral; interrompida pela intervenção de uma senhora de cabelos brancos -que,
mais tarde, revelou ter 83 anos-,
aparentemente muito bem disposta, que, em pé, perguntou até
que idade a medicina aconselhava às mulheres manter atividade
sexual.
Respondi que algumas enfermidades são capazes de interferir
com a libido, dificultar ou mesmo
impedir o ato sexual, mas que,
descontadas essas situações patológicas, a natureza não havia imposto limites à duração da vida
sexual. Do ponto de vista médico,
acrescentei, as mulheres podem
manter relações enquanto estiverem vivas.
Foi a maior salva de palmas
que recebi na vida.
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