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FERREIRA GULLAR
É o mar e o sol misturados
Rimbaud reuniu todos os ingredientes capazes de despertar admiração em contemporâneos
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"RIMBAUD NA África", de
Charles Nicholl, que acaba de ser editado em português, me fez regressar às indagações que me assaltaram quando, jovem ainda, tomei conhecimento da
poesia desse poeta-menino e de sua
vida atordoante.
Rimbaud reuniu todos os ingredientes capazes de despertar a admiração e a perplexidade de seus
contemporâneos, particularmente
daqueles que com ele conviveram
nos primeiros três anos de sua intermitente estada em Paris. Um garoto
de 16 anos, chegado da provinciana
Charleville, trazendo nos bolsos alguns poemas de surpreendente beleza e originalidade, que violavam os
conceitos estéticos, religiosos e morais da época, só podia ser visto como um gênio. Acrescentemos a isso
dois olhos azuis de inquietante
transparência, que pareciam arrastar quem os fitasse ao paraíso ou ao
inferno.
É que aquele menino cujos poemas revelavam um lado deslumbrante e perturbador da realidade
comportava-se como um pequeno
demônio, que se exibia nu à janela
da casa de um amigo que o hospedara, levando os vizinhos a chamar a
polícia; que se deitava, vestido de
roupa amarfanhada e chapéu, no
jardim de outro amigo, a fumar haxixe num cachimbo para chocar os
transeuntes, ou, nos bares do Quartier Latin, insultava os companheiros de mesa e os agredia, como fez
com Etienne Carjat, a quem feriu
com a ponta metálica de uma bengala. Carjat, autor da célebre foto de
Rimbaud menino, que todos conhecem, tomado de fúria, destruiu todas
as fotos que fizera dele, exceto três
que não tinha consigo.
O auge desses desregramentos foi
a relação homossexual que manteve
com Paul Verlaine, que arrastou para Londres, destruindo-lhe o casamento. Meses depois, decide romper a relação, levando Verlaine ao
desespero e, finalmente, a tentar
matá-lo com um tiro de revólver.
Enquanto aquele é condenado e
preso, Rimbaud acaba de escrever,
no celeiro da casa da mãe, o poema
em prosa "Uma Estadia no Inferno".
Tem então 19 anos e abandona a
literatura. Entrega-se, a partir daí, a
sucessivas viagens a pé por vários
países europeus, chegando a inscrever-se como voluntário no Exército
colonial holandês, de que deserta
três meses depois. No último encontro com Verlaine, em Stuttgart, em
1875, este, recém-saído da prisão e
convertido ao catolicismo, tenta
doutriná-lo. Rimbaud o surra e o faz
voltar para a França. "Minha vantagem é que eu não tenho coração",
afirma, por aquela época.
Essa vida de andarilho aventureiro culmina com a decisão de transferir-se para a África, onde se fixa definitivamente, em 1880. Nunca mais
voltará à Europa, a não ser para
morrer, 11 anos depois, de um tumor
no joelho direito.
A impressão que se tem, lendo o livro de Nicholl, é que, assim que desembarca em Aden, Rimbaud se torna outra pessoa. Ele havia escrito, na
famosa "carta do vidente", que "eu é
um outro". Pode-se então dizer que
esse "eu" -que não era ele- deu lugar a um outro, que era? Ou seria
mais correto afirmar que o Rimbaud
adolescente, que se inventou nas
noitadas de Paris e nos poemas geniais, tomou de fato horror à poesia
e ao desregramento para na África
tórrida e rude reinventar-se como
um homem comum, só preocupado
com transações comerciais e viagens de negócio?
Durante todos os anos que passa
entre Aden e Harar, jamais alude à
sua primeira vida e, quando alguém
o indaga sobre isso, responde que
preferia "não remexer naquele lixo".
Negocia com ouro, café, pele de
animais, mete-se no tráfico de armas, compra uma escrava e vive
com ela em concubinato e depois
com outra mulher também negra.
Não se sabe de nenhum escândalo,
de nenhum relacionamento homossexual durante seu longo exílio africano. Todos os que o conheceram ali
falam dele como um homem reservado e triste, que às vezes fazia rir
com suas tiradas sarcásticas, mas
um negociante ativo e responsável.
Só não perdeu o hábito de andar
quilômetros a pé, então à frente das
caravanas de camelos, causa (talvez)
das varizes que lhe surgiram na perna e obrigaram-no a ir para a França.
Numa padiola, fez a mais terrível de
suas viagens até chegar ao porto onde embarcou para Marselha. Amputaram-lhe a perna. Esquálido, temendo morrer, chora abraçado à irmã, que tenta confortá-lo. "Eu vou
para o fundo da terra e tu continuarás andando ao sol", responde ele.
Morreu em 10 de novembro de 1891.
Fecho o livro, arrasado. E me vem
à memória o trecho de um poema
seu: "Mas as aranhas do cercado/ comem apenas violetas".
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