UOL


São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Para alguns, a guerra é quente e a paz é chata

Um sapateiro parisiense, logo após a Guerra Franco-Prussiana, de 1870, caiu em depressão e ameaçou suicidar-se. Não pela vergonha da derrota diante dos alemães, derrota que Émile Zola chamou de "debacle" em famoso romance. Até que o sapateiro era patriota, como todos os franceses. O motivo de sua crise foi mais prosaico e pessoal. Com o fim da guerra, ele perdeu encomendas para o Exército francês, que precisava de botas, botinas, borzeguins, enfim, de um equipamento específico para calçar adequadamente as tropas.
Antes e depois dele, muita gente que lucra com a guerra perde com a paz. Se cada míssil inteligente ou burro está na decorosa faixa de US$ 1 milhão, até os busca-pés das próximas festas juninas serão inflacionados pela grande farra da pólvora.
Bertoldo Brecha, que, após a queda do Muro de Berlim, cada vez é menos citado, dizia em "Mãe Coragem" que nada havia de melhor para a economia e a ordem de uma nação do que uma boa guerra -quanto mais longa e cruel, melhor. Não se tratava de um paradoxo ou de uma ironia macabra do teatrólogo alemão. Ele prova o que afirma no próprio texto da peça. Durante uma guerra, o Estado toma vergonha e, para não tomar uma surra nos campos de batalha, organiza melhor a sociedade, o mercado e a si próprio.
Quem discorda do governo responde a uma corte marcial e é fuzilado sumariamente ou enforcado para poupar munição. Os alimentos são estocados e racionados, as safras dirigidas pelo esforço de guerra terão de produzir o mínimo para alimentar as tropas, a imprensa e a cultura são patrulhadas para impedir que maus cidadãos, muitas vezes a soldo do inimigo, façam campanhas pacifistas. A ordem é mantida com severidade, há toque de recolher. Para ir de uma rua a outra, é necessário um salvo-conduto emitido pela autoridade militar que toma conta do quarteirão. Todos vigiam todos porque o inimigo pode se infiltrar na retaguarda.
Ora, direis, o raciocínio é cínico, mas a guerra também costuma ser de um cinismo feroz. O sapateiro de Paris, que vendia milhares de pares de botas para o Exército, não suportou a pasmaceira dos tempos de paz, quando o cidadão comum ficava com o seu sapato por anos, apelando periodicamente para as meias-solas, que rendiam pouco.
Passando do sapateiro parisiense para o complexo industrial-militar dos Estados Unidos, a paz também é nociva para os negócios. Bem verdade que, com a vitória esmagadora sobre o Iraque, a paz trará boas compensações para as economias norte-americana e inglesa, que, juntas, pretendem gerir a reconstrução do país que destruíram. A briga de foice entre as empresas que estão se habilitando a criar praticamente do nada todo um país azeitará muita mão do governo de Washington e não faltará ao apoio que dará a Bush e ao Partido Republicano nas próximas eleições, em 2004.
Além do mutirão humanitário para reconstruir hospitais, escolas, estradas, pontes, usinas e toda a infra-estrutura de uma sociedade que precisa comer todos os dias, os vencedores administrarão a segunda maior reserva de petróleo do mundo. Renderá mais do que o canal de Suez -para lembrar um conflito recente.
Todas as guerras, mesmo as consideradas "religiosas", tiveram como motivação o lucro econômico, embora os pretextos invocados tenham sido os mais disparatados. O atentado a um arquiduque em Sarajevo foi pretexto para a Primeira Guerra Mundial. E um incidente forjado entre meia dúzia de soldados na fronteira da Alemanha com a Polônia foi o pretexto imediato para a Segunda.
Mas não é apenas o complexo industrial-militar que sai perdendo com a paz. Tampouco os sapateiros. O pessoal da mídia também sofre um baque e, evidentemente, perde um assunto. A revista "Life", num tempo em que ainda não havia TV em circuito comercial, faturou horrores, licitamente, com a cobertura visual da última guerra mundial. Anos depois, a rede CNN ganhou tudo a que tinha direito com a guerra do Golfo, de 1991.
Já nos tempos da antiga Roma, quando as coisas ficavam difíceis para o César de plantão, inventava-se uma campanha e foi assim que Tibério levou as fronteiras do império tão longe e Marco Aurélio foi morrer às margens do Danúbio, um rio que banhava terras bárbaras que nada tinham com a cultura mediterrânea e com o colosso que dominava o mundo.
O próprio César não fez por menos. Ele próprio contou à sua maneira a campanha das Gálias, antes que outros escribas o fizessem. Pulando no tempo, Winston Churchill também escreveu uma história da guerra de que participou, ganhou dinheiro e o Prêmio Nobel de Literatura.
Evitando mencionar novos exemplos, reduzo-me à insignificância habitual. Sem Bush, sem Bagdá, sem mortes e sem armas inteligentes, só me sobram as armas burras de sempre. Não mais deverei preocupar-me em saber onde está Saddam Hussein. Continuarei na minha, preocupado apenas em saber onde estão os ossos de Dana de Teffé.


Texto Anterior: Crítica: Cristo vive drama de rua sem vício da piedade
Próximo Texto: Panorâmica - Justiça: Escritor russo é condenado à prisão
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.