São Paulo, quarta-feira, 18 de abril de 2007

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MARCELO COELHO

Dias que abalaram o mundo

Nada melhor do que um pouco de realidade histórica quando ética e política viram abstração

NO COMEÇO de novembro de 1918, já não havia esperança para os alemães. A Primeira Guerra Mundial estava a ponto de terminar; durante os quatro anos do conflito, morreram em média 250 pessoas por hora.
O comandante geral das forças aliadas era o marechal francês Ferdinand Foch. Os alemães se preparavam para propor um armistício. A atitude de Foch foi duríssima. Uma opção seria encerrar a guerra o mais cedo possível. Outra era prolongá-la um pouco mais, de modo a destruir definitivamente a Alemanha, eliminando as possibilidades de uma revanche no futuro. Qual seria a decisão mais correta, na circunstância?
Pela primeira vez, a Alemanha entregou a um político civil a missão de negociar um tratado de paz. Era Matthias Erzberger, que perdera seu filho único na guerra, três semanas antes. O próprio Foch perdera um filho de 25 anos, em 1914.
O impasse diplomático se prolonga durante alguns dias. Um corte, agora, para o 28º Batalhão da Infantaria Canadense, estacionado perto da linha de combate. O soldado George Price recebe ordens de avançar até Mons, na Bélgica, onde a guerra havia aliás começado, quatro anos antes. Finalmente, Erzberger recebe ordens para assinar o armistício. Isso é feito às 5h10 da manhã de 11 de novembro de 1918. Seis horas depois, às 11 da manhã, acabam as hostilidades. O soldado George Prince, baleado às 10h58, morrerá ouvindo os últimos tiros da Primeira Guerra Mundial.
Esta é a narrativa resumida de um documentário histórico produzido pela BBC, que faz parte da série "Dias que Abalaram o Mundo". Andou passando nos labirintos da TV a cabo, mas agora os DVDs podem ser comprados em banca de jornal, ou no site www.aventurasnahistoria.com.br/loja.
Não vi todos ainda. Graças à narrativa concentrada em pouco mais de um dia decisivo e em poucos personagens, o efeito desses documentários é eletrizante.
No começo de junho de 1967, o rei Hussein da Jordânia recebe um telefonema do líder egípcio Gamal Abdel Nasser. Os dois tinham assinado um acordo militar pouco tempo antes. Nasser tem boas notícias para Hussein: conta-lhe que os egípcios impõem às forças israelenses uma derrota humilhante. Estava na hora de Hussein ajudar nesse momento histórico. O que fará ? Pode acreditar em Nasser? O fato é que, àquela altura, toda a força aérea egípcia fora dizimada num ataque-surpresa israelense.
Em pleno Natal de 1989, o ditador romeno Nicolae Ceausescu ainda está confiante. Apesar da onda de libertação que varre o Leste europeu e dos protestos pelos direitos humanos que ocorrem em seu país, ele convoca um comício monstro em apoio ao seu regime. Na TV estatal romena, o diretor Georgea Minitaru cuida das transmissões do evento. No meio do discurso de Ceausescu, a multidão começa a protestar. Ceausescu hesita; engasga; fica em silêncio. O que fará Minitaru? Continua ou encerra a transmissão? O fiasco da "transmisiune directa" pela TV precipitou a queda do regime.
Decisões e mais decisões. Erros e acertos, coerências e traições, dentro de uma situação instável e marcada por estruturas de longa duração, surgem a cada momento nesses documentários da BBC.
Pertenço a uma geração que aprendeu história segundo um padrão interpretativo economicista e sociologizante, marcado pela influência de Marx. Cinco ou dez séculos de feudalismo, pelo que aprendi, nada mais foram do que a monótona repetição de uma mesma rotina entre servos e senhores. A história da colônia e do império brasileiro resumiu-se à passagem da cana-de-açúcar para o café, no modelo da monocultura escravista para exportação.
Assim, o "significado mais profundo" dos fatos se substituiu aos fatos propriamente ditos. Não é errado, mas é terrivelmente frustrante e parcial. Para os adolescentes, em particular, perde-se um aspecto decisivo da existência humana: o da ética individual. Cada episódio mostrado nesses documentários envolve decisões morais e políticas complexas, cujas conseqüências se medem em mortes e em ganhos reais para a humanidade.
Num ambiente em que política e ética são motivo de muita conversa abstrata e sem interesse, nada melhor do que um pouco de realidade histórica. Que ela venha empacotada em DVDs, disponíveis em qualquer banca de jornal, é em muitos sentidos uma ótima notícia.


coelhofsp@uol.com.br

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