|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Dias que abalaram o mundo
Nada melhor do que um pouco de realidade histórica quando ética e política viram abstração
NO COMEÇO de novembro de
1918, já não havia esperança
para os alemães. A Primeira
Guerra Mundial estava a ponto de
terminar; durante os quatro anos do
conflito, morreram em média 250
pessoas por hora.
O comandante geral das forças
aliadas era o marechal francês Ferdinand Foch. Os alemães se preparavam para propor um armistício. A
atitude de Foch foi duríssima. Uma
opção seria encerrar a guerra o mais
cedo possível. Outra era prolongá-la
um pouco mais, de modo a destruir
definitivamente a Alemanha, eliminando as possibilidades de uma revanche no futuro. Qual seria a decisão mais correta, na circunstância?
Pela primeira vez, a Alemanha entregou a um político civil a missão de
negociar um tratado de paz. Era
Matthias Erzberger, que perdera
seu filho único na guerra, três semanas antes. O próprio Foch perdera
um filho de 25 anos, em 1914.
O impasse diplomático se prolonga durante alguns dias. Um corte,
agora, para o 28º Batalhão da Infantaria Canadense, estacionado perto
da linha de combate. O soldado
George Price recebe ordens de avançar até Mons, na Bélgica, onde a
guerra havia aliás começado, quatro
anos antes. Finalmente, Erzberger
recebe ordens para assinar o armistício. Isso é feito às 5h10 da manhã
de 11 de novembro de 1918. Seis horas depois, às 11 da manhã, acabam
as hostilidades. O soldado George
Prince, baleado às 10h58, morrerá
ouvindo os últimos tiros da Primeira Guerra Mundial.
Esta é a narrativa resumida de um
documentário histórico produzido
pela BBC, que faz parte da série
"Dias que Abalaram o Mundo". Andou passando nos labirintos da TV a
cabo, mas agora os DVDs podem ser
comprados em banca de jornal, ou
no site www.aventurasnahistoria.com.br/loja.
Não vi todos ainda. Graças à narrativa concentrada em pouco mais
de um dia decisivo e em poucos
personagens, o efeito desses documentários é eletrizante.
No começo de junho de 1967, o
rei Hussein da Jordânia recebe um
telefonema do líder egípcio Gamal
Abdel Nasser. Os dois tinham assinado um acordo militar pouco
tempo antes. Nasser tem boas notícias para Hussein: conta-lhe que os
egípcios impõem às forças israelenses uma derrota humilhante.
Estava na hora de Hussein ajudar
nesse momento histórico. O que fará ? Pode acreditar em Nasser? O
fato é que, àquela altura, toda a força aérea egípcia fora dizimada num
ataque-surpresa israelense.
Em pleno Natal de 1989, o ditador romeno Nicolae Ceausescu
ainda está confiante. Apesar da onda de libertação que varre o Leste
europeu e dos protestos pelos direitos humanos que ocorrem em
seu país, ele convoca um comício
monstro em apoio ao seu regime.
Na TV estatal romena, o diretor
Georgea Minitaru cuida das transmissões do evento. No meio do discurso de Ceausescu, a multidão começa a protestar. Ceausescu hesita; engasga; fica em silêncio. O que
fará Minitaru? Continua ou encerra a transmissão? O fiasco da
"transmisiune directa" pela TV
precipitou a queda do regime.
Decisões e mais decisões. Erros e
acertos, coerências e traições, dentro de uma situação instável e marcada por estruturas de longa duração, surgem a cada momento nesses documentários da BBC.
Pertenço a uma geração que
aprendeu história segundo um padrão interpretativo economicista e
sociologizante, marcado pela influência de Marx. Cinco ou dez séculos de feudalismo, pelo que
aprendi, nada mais foram do que a
monótona repetição de uma mesma rotina entre servos e senhores.
A história da colônia e do império
brasileiro resumiu-se à passagem
da cana-de-açúcar para o café, no
modelo da monocultura escravista
para exportação.
Assim, o "significado mais profundo" dos fatos se substituiu aos
fatos propriamente ditos. Não é errado, mas é terrivelmente frustrante e parcial. Para os adolescentes,
em particular, perde-se um aspecto
decisivo da existência humana: o
da ética individual. Cada episódio
mostrado nesses documentários
envolve decisões morais e políticas
complexas, cujas conseqüências se
medem em mortes e em ganhos
reais para a humanidade.
Num ambiente em que política e
ética são motivo de muita conversa
abstrata e sem interesse, nada melhor do que um pouco de realidade
histórica. Que ela venha empacotada em DVDs, disponíveis em qualquer banca de jornal, é em muitos
sentidos uma ótima notícia.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Cormac McCarthy ganha o Pulitzer Próximo Texto: Feira aposta no mercado de arte Índice
|