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LIVROS
Crítica/"O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20"
Ross biografa século desnorteador
Obra de norte-americano peca por mau humor com música pós-1970, mas é melhor relato de tempos de mudanças e incertezas
CELSO LOUREIRO CHAVES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Adrian Leverkühn, compositor que nunca existiu, é um dos personagens principais de "O Resto É
Ruído - Ouvindo o Século 20",
do jornalista norte-americano
Alex Ross. Leverkühn foi imaginado pelo escritor Thomas
Mann em "Doutor Fausto" e
percorre "O Resto É Ruído" como um fantasma, uma alegoria
de tudo o que ocorreu na música do século passado.
Ele aparece tantas vezes que
a certa altura não resta ao leitor
senão berrar "Fora Thomas
Mann!" e pedir que os compositores reais apareçam. É que
eles já são suficientes para demonstrar as mudanças estéticas, os dogmatismos, as incertezas ideológicas que dominaram a música do século 20.
Talvez Ross, um dos convidados da Flip deste ano (leia mais
abaixo), não tenha dado a última palavra sobre o assunto,
mas "O Resto É Ruído" é o mais
perto que se chegou de transformar em leitura instigante a
arte mais incompreendida e
menos apreciada de todas as artes do século passado.
Há outro compositor que
atravessa o livro quase de ponta
a ponta: Igor Stravinsky. Ele
aparece bem no início da narrativa e só vai sumir umas 400 páginas adiante, depois de muitas
interrupções e divagações que
são os próprios desvios das músicas do século passado.
Essa é a maneira de ouvir o
século 20 e também de organizar um livro sobre ele -ser linear enquanto for possível e,
quando não, abrir desvios espetaculares como o mergulho nas
relações promíscuas entre a
música do século 20 e as políticas e os regimes, uma promiscuidade até bem comum mas
que parecia ter sido enterrada
no século 19.
Divisão da música
"O Resto É Ruído" confirma
a divisão da música do século
20 em três blocos: um para a
música moderna "antiga" até
1933, um interlúdio de guerra
até 1945 e um bloco bastante
congestionado que traz a música até 2000. Alex Ross trata
bem os dois primeiros blocos,
com músicas que já foram bem
biografadas e sociologizadas.
Mas o terceiro se desfaz em
generalidades, e o que era objetividade se transforma em desfile de nomes e obras, uma correria sem fim. Há impaciência e
mau humor com a música pós-1970, como se as suas explosões
de estilo e suas estéticas opostas ainda não permitissem linearidade de abordagem ou
uma boa porta de entrada.
Não é o único problema de
"O Resto É Ruído". O olhar do
autor sobre as músicas do século passado é todo norte-americano. Isso explica o exagero dos
capítulos sobre Shostakovich,
Britten e Sibelius, que só nos
Estados Unidos são centrais, e
a ausência quase total de compositores latino-americanos.
A edição brasileira deixa um
pouco a desejar. A tradução para o português é desajeitada e,
além de formalizar a prosa informal de Alex Ross, às vezes
contradiz o texto original.
Incontornável
Mesmo assim, este é o melhor livro que se teve até hoje
nesse tipo de texto, que prefere
descrever do que analisar e que
usa a palavra para evitar o
exemplo musical. Enquanto a
crônica definitiva da música
pós-1970 não é escrita, "O Resto É Ruído" torna-se a biografia
incontornável da música pré-1970, reunindo um corpo de informações difícil de ser encontrado num só lugar.
Até onde sua objetividade alcança, o livro é um relato extremamente feliz e exato de um
dos séculos mais desnorteadores de toda a música. Tão desnorteador que até compositores imaginários tiveram que ser
criados para que também eles
fizessem músicas que ninguém
nunca ouviu.
CELSO LOUREIRO CHAVES é pianista, compositor e professor de história da música da
UFRGS.
O RESTO É RUÍDO - OUVINDO O
SÉCULO 20
Autor: Alex Ross
Tradução: Claudio Carina e Ivan Weisz
Kuck
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 64 (688 págs.)
Avaliação: bom
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