São Paulo, sábado, 18 de abril de 2009

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LIVROS

Crítica/"O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20"

Ross biografa século desnorteador

Obra de norte-americano peca por mau humor com música pós-1970, mas é melhor relato de tempos de mudanças e incertezas

CELSO LOUREIRO CHAVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Adrian Leverkühn, compositor que nunca existiu, é um dos personagens principais de "O Resto É Ruído - Ouvindo o Século 20", do jornalista norte-americano Alex Ross. Leverkühn foi imaginado pelo escritor Thomas Mann em "Doutor Fausto" e percorre "O Resto É Ruído" como um fantasma, uma alegoria de tudo o que ocorreu na música do século passado.
Ele aparece tantas vezes que a certa altura não resta ao leitor senão berrar "Fora Thomas Mann!" e pedir que os compositores reais apareçam. É que eles já são suficientes para demonstrar as mudanças estéticas, os dogmatismos, as incertezas ideológicas que dominaram a música do século 20.
Talvez Ross, um dos convidados da Flip deste ano (leia mais abaixo), não tenha dado a última palavra sobre o assunto, mas "O Resto É Ruído" é o mais perto que se chegou de transformar em leitura instigante a arte mais incompreendida e menos apreciada de todas as artes do século passado.
Há outro compositor que atravessa o livro quase de ponta a ponta: Igor Stravinsky. Ele aparece bem no início da narrativa e só vai sumir umas 400 páginas adiante, depois de muitas interrupções e divagações que são os próprios desvios das músicas do século passado.
Essa é a maneira de ouvir o século 20 e também de organizar um livro sobre ele -ser linear enquanto for possível e, quando não, abrir desvios espetaculares como o mergulho nas relações promíscuas entre a música do século 20 e as políticas e os regimes, uma promiscuidade até bem comum mas que parecia ter sido enterrada no século 19.

Divisão da música
"O Resto É Ruído" confirma a divisão da música do século 20 em três blocos: um para a música moderna "antiga" até 1933, um interlúdio de guerra até 1945 e um bloco bastante congestionado que traz a música até 2000. Alex Ross trata bem os dois primeiros blocos, com músicas que já foram bem biografadas e sociologizadas. Mas o terceiro se desfaz em generalidades, e o que era objetividade se transforma em desfile de nomes e obras, uma correria sem fim. Há impaciência e mau humor com a música pós-1970, como se as suas explosões de estilo e suas estéticas opostas ainda não permitissem linearidade de abordagem ou uma boa porta de entrada.
Não é o único problema de "O Resto É Ruído". O olhar do autor sobre as músicas do século passado é todo norte-americano. Isso explica o exagero dos capítulos sobre Shostakovich, Britten e Sibelius, que só nos Estados Unidos são centrais, e a ausência quase total de compositores latino-americanos. A edição brasileira deixa um pouco a desejar. A tradução para o português é desajeitada e, além de formalizar a prosa informal de Alex Ross, às vezes contradiz o texto original.

Incontornável
Mesmo assim, este é o melhor livro que se teve até hoje nesse tipo de texto, que prefere descrever do que analisar e que usa a palavra para evitar o exemplo musical. Enquanto a crônica definitiva da música pós-1970 não é escrita, "O Resto É Ruído" torna-se a biografia incontornável da música pré-1970, reunindo um corpo de informações difícil de ser encontrado num só lugar. Até onde sua objetividade alcança, o livro é um relato extremamente feliz e exato de um dos séculos mais desnorteadores de toda a música. Tão desnorteador que até compositores imaginários tiveram que ser criados para que também eles fizessem músicas que ninguém nunca ouviu.

CELSO LOUREIRO CHAVES é pianista, compositor e professor de história da música da UFRGS.


O RESTO É RUÍDO - OUVINDO O SÉCULO 20

Autor: Alex Ross
Tradução: Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 64 (688 págs.)
Avaliação: bom



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