São Paulo, sábado, 18 de maio de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

Considerada "rainha do suspense", inglesa comenta seu romance "Morte no Seminário", recém-lançado no Brasil

Morte no jardim de P.H. James

DA REPORTAGEM LOCAL

A sorridente avozinha de 80 anos na foto ao lado, em meio ao jardim de azaléas ou coisa que o valha, é capaz de anotar a seguinte programação na sua agendinha.
Quarta-feira à tarde, sessão na aristocrática Câmara dos Lordes, em Londres, que frequenta como baronesa de Holland Park. Quarta-feira à noite, dar retoques no livro em que o assassino estrangula as vítimas assobiando hinos e depois entope a boca dos falecidos com pêlos púbicos.
Phyllis Dorothy James, ou P.D. James no ambiente das letras, não mistura uma coisa e a outra.
Embora venha sendo chamada de sucessora da "rainha do suspense", Agatha Christie, há pelo menos 20 anos, essa escritora de Oxford tem se notabilizado justamente por colocar a tradicional literatura policial inglesa em um expresso rumo a um Oriente bem distinto. Nos seus mais de 15 livros, sedimentos de quatro décadas de assassinatos literários, ela contradiz os principais preceitos da antecessora de coroa.
Em primeiro lugar, o romance policial não é necessariamente um "whodunit", para usar a expressão do cineasta Alfred Hitchcock para histórias em que o importante é descobrir, no fim, quem é o culpado.
Em segundo, o cenário não é sempre refinado como os "christianos": tradicionais casarões de campo, mansões com bibliotecas de livros de couro, mordomos de fraque. Se P.D. James não chega aos ambientes sujos do "noir americano" de Raymond Chandler e Dashiell Hammett, ela leva a narrativa para panos de fundo mais variados e possíveis.
Mas a dissonância central entre as damas inglesas do crime talvez esteja nos seus desfechos. Nos livros protagonizados por Adam Dalgliesh, detetive predileto de James, não é sempre que o livro termina com final idílico.
Não é bem o caso de "Morte no Seminário", que a Companhia das Letras lançou recentemente e que vem frequentando as listas de mais vendidos das últimas semanas. Foi para falar desse trabalho que a escritora inglesa, um dos grandes nomes da literatura policial que respira, saiu do jardim onde planeja seus assassinatos para trocar e-mails com a Folha. Leia alguns trechos da entrevista.
(CASSIANO ELEK MACHADO)

Folha - Como a sra. faz para conciliar a confortável vida de avó e baronesa de Holland Park com a criação e descrição cotidiana de assassinatos barrocos e cruéis?
P.D. James -
Frequentemente me perguntam como uma inocente e animada vovó, integrante da Casa dos Lordes e fiel da Igreja Anglicana, pode também escrever livros sobre assassinatos terríveis. A única coisa que posso dizer é que as histórias de detetives, com sua estrutura bastante formal, mas com possibilidades infinitas, sempre me fascinou.

Folha - A sra. concorda com os críticos que dizem que sua literatura trabalha essa "estrutura formal" de maneira feminina, sobretudo na descrição delicada de ambientes?
James -
Não gosto de dividir escritores em homens e mulheres, mas acho que escritoras de mistério realmente se preocupam particularmente com enredos, motivos, descrições, muito mais do que com violência ou armamentos. Nosso interesse em eventos pequenos da vida cotidiana também nos ajuda a fabricar as pistas que o bom suspense deve ter.

Folha - Em "Morte no Seminário", assim como em trabalhos anteriores, a sra. mostra uma riqueza de detalhes com relação a procedimentos técnicos da polícia, como termos e práticas de medicina legal. A sra. pesquisa para escrever?
James -
Eu realmente me esforço muito na pesquisa e tenho grande ajuda de conhecidos meus na polícia. Para fazer "Morte no Seminário", por exemplo, eu visitei um colégio religioso em Oxford. Devo dizer, porém, que o seminário que descrevo no livro é bem diferente. Saiu da minha imaginação.

Folha - "Morte no Seminário" faz um retrato decadente do anglicanismo, incluindo o tema bastante atual da pedofilia religiosa. Qual a opinião da sra. sobre a situação real dessa igreja?
James -
A Igreja Anglicana realmente tem enfrentado os mesmos problemas pelos quais têm passado a maior parte das igrejas cristãs. Vive a queda do número de fiéis, problemas financeiros, dificuldade de atrair pessoas para o sacerdócio. O anglicanismo também tem problemas quanto à ordenação tanto de mulheres quanto de homossexuais assumidos e passou por tempos difíceis quando se questionou se deveria deixar de ser a igreja oficial inglesa. Ainda assim, ainda tem muitos fiéis.

Folha - Como a sra. lida com a reverência que sempre lhe é feita de "rainha do suspense"? Qual sua relação com as gerações anteriores dessa nobreza, como Agatha Christie, por exemplo?
James -
Eu não considero Agatha Christie uma romancista maior, mas ela foi uma mestra do mistério e seus engenhosos livros deram prazer, entretenimento e até conforto para milhões de pessoas em todo o mundo. Esse é um feito considerável.

Folha - A sra. tem livros publicados em muitos países com realidades bem diferentes da inglesa. Como a sra. acha que o público de um país como o Brasil, que tem experimentado um contato intenso com a violência, tende a recepcionar uma obra como a sua?
James -
Eu me interesso muito pelo que há em comum entre leitores de minhas obras que vivem em países muito diferentes. Mas não acredito que fatores como a violência que eles possam encontrar em seus cotidianos influencie o modo como recepcionam minha obra. Acho que de maneira geral enxergam o que faço como uma obra de mistério genuína que é bem escrita e que pode ser tratada como um romance sério. Esse me parece o julgamento de leitores sagazes de todos os países.

Folha - No Brasil é muito popular a brincadeira de que o mordomo é sempre o culpado em tramas de mistério. A sra., como escritora de suspense, acha que é possível fazer um livro desse gênero com um mordomo culpado?
James -
Eu nunca escrevi um livro com um mordomo culpado. Acho que isso seria um bocado difícil. Não porque as pessoas fossem desconfiar logo de cara da falta de inocência do mordomo, mas porque escrevo livros calcados na realidade inglesa, e ninguém hoje na Inglaterra tem condições econômicas de ter um mordomo.



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