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CRÍTICA/CINEMA
Che Guevara de Walter Salles é herói assistencialista
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Na trajetória de Ernesto
Che Guevara (1928-1967) sobrepõem-se duas mitologias: a
cristã e a da esquerda. Entre as
muitas analogias evidentes entre
Jesus Cristo e o Che, estão o martírio pelo bem da humanidade, a
pureza de princípios e a idéia de
missão.
Assim como Jesus, Che Guevara
é uma espécie de gabarito moral
diante do qual medimos nossos
defeitos e fraquezas.
A essa dupla matriz o filme
"Diários de Motocicleta", de Walter Salles (e que será apresentado
amanhã no Festival de Cannes)
acrescenta uma terceira: o romance de formação ou, melhor
dizendo, o mito moderno da juventude. A viagem, a aventura, a
busca de identidade, a descoberta
do mundo -eis os elementos
centrais desse mito.
Como resultado da hábil orquestração dessas várias linhas de
força, Salles construiu uma hagiografia moderna, um "road movie"
edificante, apto a comover uma
enorme platéia jovem em todo o
mundo.
"Diários de Motocicleta", como
se sabe, baseia-se nos relatos do
próprio Che e de seu amigo Alberto Granado acerca da jornada
de milhares de quilômetros que
os dois fizeram pela América do
Sul em 1952. Nela, o Che teria descoberto a realidade profunda do
continente e sua própria missão
transformadora.
O final trágico do personagem
está fora do filme, mas todos sabemos dele, o que confere gravidade e sentido teleológico a cada
detalhe de sua trajetória.
Um exemplo: os US$ 15 que a
namorada lhe deu para comprar
um biquíni quando chegasse aos
Estados Unidos adquirem o caráter de tentação a ser vencida.
A todo momento, o companheiro do Che, Granado (Rodrigo
de la Serna), mostra ao herói tudo
o que aquele dinheiro poderia
lhes comprar: hotel confortável,
boa comida, mulheres. A todos
esses prazeres o Che diz não, preferindo dormir ao relento e passar
fome. Acaba dando o dinheiro a
uma família de camponeses miseráveis.
De todas as fontes de que o filme
se nutre, a mais forte é a cristã. O
Che vivido por Gael García Bernal
é íntegro, casto e generoso como
cabe a um santo. Alberto Granado
é seu contraponto humano, falível
e cômico.
Não por acaso, o ponto culminante da viagem é uma colônia de
leprosos na Amazônia. Ao recusar as luvas que o protegeriam do
contato com os doentes, ao atravessar a nado o rio que os separa
dos sãos, o Che revela sua natureza de pura entrega altruísta.
O contato com os leprosos, vale
lembrar, é uma figura recorrente
dentro da tradição cristã, como
símbolo máximo da compaixão.
O Ernesto dos "Diários de Motocicleta" é um Che Guevara que
ainda não endureceu. É, ainda,
pura ternura.
Mesmo seus momentos isolados de revolta e violência -como
a cena em que atira uma pedra no
caminhão de uma mineradora-
são análogos às irrupções de cólera do próprio Cristo (lembremos
a expulsão dos vendilhões do
templo). Sua verdadeira vocação
é a caridade.
Esse Che pré-revolucionário cabe como uma luva como herói de
nossa época em que os conflitos
se despolitizaram e a luta de classes cedeu lugar às várias formas
de assistencialismo do governo,
das igrejas e das ONGs.
"Diários de Motocicleta" é de
uma competência irretocável. A
fluência narrativa, a segurança da
decupagem, o talento dos atores,
tudo nele conflui para constituição de um poderoso conto moral
sintonizado com a plataforma da
igreja dos oprimidos.
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