São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2004

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CRÍTICA/CINEMA

Che Guevara de Walter Salles é herói assistencialista

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Na trajetória de Ernesto Che Guevara (1928-1967) sobrepõem-se duas mitologias: a cristã e a da esquerda. Entre as muitas analogias evidentes entre Jesus Cristo e o Che, estão o martírio pelo bem da humanidade, a pureza de princípios e a idéia de missão.
Assim como Jesus, Che Guevara é uma espécie de gabarito moral diante do qual medimos nossos defeitos e fraquezas.
A essa dupla matriz o filme "Diários de Motocicleta", de Walter Salles (e que será apresentado amanhã no Festival de Cannes) acrescenta uma terceira: o romance de formação ou, melhor dizendo, o mito moderno da juventude. A viagem, a aventura, a busca de identidade, a descoberta do mundo -eis os elementos centrais desse mito.
Como resultado da hábil orquestração dessas várias linhas de força, Salles construiu uma hagiografia moderna, um "road movie" edificante, apto a comover uma enorme platéia jovem em todo o mundo.
"Diários de Motocicleta", como se sabe, baseia-se nos relatos do próprio Che e de seu amigo Alberto Granado acerca da jornada de milhares de quilômetros que os dois fizeram pela América do Sul em 1952. Nela, o Che teria descoberto a realidade profunda do continente e sua própria missão transformadora.
O final trágico do personagem está fora do filme, mas todos sabemos dele, o que confere gravidade e sentido teleológico a cada detalhe de sua trajetória.
Um exemplo: os US$ 15 que a namorada lhe deu para comprar um biquíni quando chegasse aos Estados Unidos adquirem o caráter de tentação a ser vencida.
A todo momento, o companheiro do Che, Granado (Rodrigo de la Serna), mostra ao herói tudo o que aquele dinheiro poderia lhes comprar: hotel confortável, boa comida, mulheres. A todos esses prazeres o Che diz não, preferindo dormir ao relento e passar fome. Acaba dando o dinheiro a uma família de camponeses miseráveis.
De todas as fontes de que o filme se nutre, a mais forte é a cristã. O Che vivido por Gael García Bernal é íntegro, casto e generoso como cabe a um santo. Alberto Granado é seu contraponto humano, falível e cômico.
Não por acaso, o ponto culminante da viagem é uma colônia de leprosos na Amazônia. Ao recusar as luvas que o protegeriam do contato com os doentes, ao atravessar a nado o rio que os separa dos sãos, o Che revela sua natureza de pura entrega altruísta.
O contato com os leprosos, vale lembrar, é uma figura recorrente dentro da tradição cristã, como símbolo máximo da compaixão. O Ernesto dos "Diários de Motocicleta" é um Che Guevara que ainda não endureceu. É, ainda, pura ternura.
Mesmo seus momentos isolados de revolta e violência -como a cena em que atira uma pedra no caminhão de uma mineradora- são análogos às irrupções de cólera do próprio Cristo (lembremos a expulsão dos vendilhões do templo). Sua verdadeira vocação é a caridade.
Esse Che pré-revolucionário cabe como uma luva como herói de nossa época em que os conflitos se despolitizaram e a luta de classes cedeu lugar às várias formas de assistencialismo do governo, das igrejas e das ONGs.
"Diários de Motocicleta" é de uma competência irretocável. A fluência narrativa, a segurança da decupagem, o talento dos atores, tudo nele conflui para constituição de um poderoso conto moral sintonizado com a plataforma da igreja dos oprimidos.


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