São Paulo, segunda-feira, 18 de maio de 2009

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Jogo dos palitos

Figura histórica e controversa da arte norte-americana, Chris Burden, 63, refaz uma de suas maiores esculturas no interior de Minas Gerais, lançando 70 vigas de aço numa piscina de concreto molhado

Divulgação
A escultura 'Beam Drop', de Chris Burden, em montanha em Brumadinho (MG)

SILAS MARTÍ
ENVIADO ESPECIAL A BRUMADINHO (MG)

"É como fazer sexo." Lançar mais de 70 vigas de aço de uma altura de 40 metros numa piscina de concreto molhado foi uma experiência quase erótica para o artista Chris Burden. O americano subiu uma montanha de Brumadinho, no interior mineiro, com caminhões, guindastes, ambulâncias, uma equipe de assistentes e toneladas de vigas metálicas. Sob uma tenda de plástico, passou 12 horas vendo cada uma despencar no momento certo, repetindo uma escultura que fez há 25 anos em Nova York.
Seu "Beam Drop", ou "queda de viga", original foi destruído quando o governo do Estado americano viu que não podia bancar a manutenção do parque onde estava a escultura e limpou o terreno para oferecer aulas de pintura a dedo.
Mais de duas décadas depois, o Instituto Inhotim, museu de arte contemporânea do colecionador Bernardo Paz, convidou Burden para refazer a obra, que deve estar acessível ao público em outubro, quando uma estrada for construída até lá. Burden conta que, na viagem a Minas Gerais, usou o cinto de segurança o tempo todo, com medo dos taxistas. Também ficou feliz em ver as ambulâncias no local de trabalho, lembrança de sua casa nos arredores de Los Angeles, onde tem um carro de bombeiro para se proteger dos incêndios florestais. Não parece o mesmo artista que, nos anos 70, pagou um amigo para lhe dar um tiro no braço, na performance que pôs seu nome entre os precursores da body art. "Foi na Guerra do Vietnã, quando milhares de garotos da minha idade eram alvo de disparos", lembra Burden, 63. "Planejei tudo: era para a bala passar de raspão e fazer rolar só uma gota de sangue."
Rolaram muito mais, e Burden passou meses em conversas com psiquiatras tentando curar uma depressão pós-disparo. Recuperado, teve outras chances para se destruir. Foi crucificado na carroceria de um Fusca, com as mãos pregadas na fuselagem, e passou cinco dias confinado num armário. Também diz ter passado 22 dias escondido, sem comer, atrás de uma parede falsa.
Só interrompeu as performances quando guardas da fronteira da Holanda com a França impediram que o artista atravessasse o limite entre os países dirigindo um carro que ele mesmo construiu. Por não ter placa, foi preciso transportar o "B-Car" de caminhão para o território francês, o que, para ele, tirava o sentido da obra.

"Se eu fosse Deus..."
Foi então que substituiu o corpo pela escultura. Nas palavras do curador de Inhotim, Rodrigo Moura, "cada viga que cai é como o corpo do artista". Burden vai além. "Se eu fosse Deus, faria todas as vigas caírem ao mesmo tempo", delira. "Eu prefiro sempre o caos." Na escultura que compara a um jogo de palitinhos, Burden diz "zombar da arquitetura".
"Estou sendo subversivo", resume. "É infantil jogar vigas de aço sem propósito dentro de um buraco, é brincar com a ideia de prédio moderno." Se o tiro no braço foi resposta ao Vietnã, o primeiro "Beam Drop", feito em 1984, era uma reação ao yuppismo ascendente, a ética do progresso individualista sob Ronald Reagan, e à especulação imobiliária que terminou de cobrir Manhattan de arranha-céus cintilantes. Em comum aos trabalhos, a carga viril. A bala que penetra a carne e as vigas que rasgam o concreto molhado parecem se mover à base de testosterona.
"Você vê que algo muito violento aconteceu, onde entraram as vigas, os respingos de concreto, os arranhões", diz Burden. "É um evento catastrófico que ficou petrificado." Talvez a mesma catástrofe das telas do expressionista Jackson Pollock, que estendia o quadro no chão e gotejava manchas de tinta sobre a superfície, tentando marcar na obra os traços de sua construção. O que Pollock chamou de "action painting", Burden traduziu para "geo-expressionismo".
Isso porque também renuncia ao controle total da escultura e enxerga um elemento geológico no retorno das vigas de aço ao estado bruto de minério, fincadas na terra de onde extraem o ferro de Minas Gerais.
No topo do monte, as vigas tortas apontam para o céu. E o emaranhado de aço que parece brotar da terra vermelha desfaz qualquer noção de progresso associada à verticalidade. Sobre a mancha verde que abraça os pavilhões de Inhotim, Burden fez uma antiarquitetura disforme, espécie de monumento ao caos, e novo endereço para os marimbondos da mata nativa.


O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite do Instituto Inhotim.


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