São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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LIVROS

BIOGRAFIA

Livro que deu origem ao filme "Mar Adentro" reúne cartas e poemas

Sem rodeios, Sampedro defende direito de morrer

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Árdua a tarefa de avaliar e outorgar estrelas para alguém que não queria, sequer, existir. Ter o livro analisado do ponto de vista literário estava longe dos anseios de Ramón Sampedro, o espanhol tetraplégico que escreveu "Cartas do Inferno" não para ser um livro de ensaio ou de poesia (apesar de conter ambos), mas para ser usado como um instrumento, político e pessoal, na defesa do direito de morrer.
Sampedro nasceu na Galícia, em 1943, e vivia num vilarejo à beira-mar. Aos 22, subiu a bordo de um navio mercante e viajou pelo mundo. As lembranças desse giro o ajudariam a preencher a mente de imagens depois que seu corpo parasse de funcionar.
Em 1968, com 25 anos, pulou no mar de uma pedra, bateu a cabeça na areia e quebrou a sétima vértebra cervical, ficando paralisado para sempre. "Sou uma cabeça viva em um corpo morto", passaria a se definir a partir de então.
Por 30 anos, Sampedro lutou pela eutanásia. Sua causa foi levada a tribunais na Espanha que a rejeitaram porque, pelas leis do país, a pessoa que o ajudasse seria acusada de homicídio.
Em 1998, Sampedro planejou escondido sua morte, com o auxílio de uma amiga que lhe deu cianureto. Para não incriminá-la, o veneno foi colocado num copo com um canudo ao lado dele. Numa ação que foi filmada, fez questão de mostrar que era ele, sozinho, quem trazia o canudo à boca.
Recentemente, a mão que o auxiliou foi identificada -e inocentada pela Justiça. Tratava-se de Ramona Maneiro, mulher com quem estabeleceu um vínculo forte após o acidente. Na versão de sua história levada ao cinema por Alejandro Amenábar, essa mulher é a personagem Rosa.
É de Amenábar, inclusive, o prólogo desta edição. O cineasta chileno-espanhol diz ter se baseado "filosoficamente" no livro para fazer "Mar Adentro", com Javier Bardem na pele do galego.
"Cartas do Inferno" traz missivas que Sampedro escreveu aos que tentaram seduzi-lo a mudar de idéia. Argumentava que, desde o acidente, seu corpo buscava um novo equilíbrio, que só existiria quando ele morresse. Reforçava que não estava desesperado e que sua ponderação era racional.
Recebia cartas de mulheres e de outros paralíticos. Com as mulheres, era galanteador, mas repudiava o que considerava um exercício de um instinto maternal egoísta. Com os deficientes, era duro: "Toda pessoa mais equilibrada psíquica e fisicamente tem mais medo de ficar como o senhor e eu do que de morrer".
No Brasil, não se acompanhou o drama de Sampedro como no mundo hispânico. Hábil em sua campanha por meio das palavras que escrevia com uma esferográfica entre os dentes, fez com que sua luta ganhasse jornais e TVs na forma de uma novela seguida por multidões e que culminou com o vídeo caseiro em que seus últimos momentos ficaram registrados.
Se o filme de Amenábar retrata um personagem irônico e doce, conduzindo o público a torcer para que desistisse da morte, o livro revela um Sampedro nada sentimental e muito seguro, que não se intimidou diante de opiniões daqueles que, reconhecia, tinham mais formação intelectual do que ele, um homem pouco letrado.
Interessava-o que sua causa fosse conhecida e discutida. O fato de seu livro virar notícia e receber resenhas em jornais pelo mundo é sinal de que Ramón Sampedro atingiu seu objetivo.
Quantas estrelas isso vale?


Cartas do Inferno
Autor:
Ramón Sampedro
Tradução: Lea P. Zylberlicht
Editora: Planeta
Quanto: R$ 35 (278 págs.)


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