São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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LIVROS

ENSAIOS

Obra póstuma do alemão W.G. Sebald revive a Alemanha pós-1945

"Campo Santo" procura resgatar o passado europeu

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aqui há uns anos, num almoço em Lisboa, perguntava o historiador britânico David Pryce-Jones se existia algum escritor europeu capaz de rivalizar com Roth ou Updike. Ele acreditava que não. A incapacidade do continente para gerar um escritor relevante era a prova acabada de que a Europa estava, precisamente, acabada.
Na altura, discordei. E, numa sugestão nada inocente, sugeri V.S. Naipaul, que dedicou um dos seus livros ao próprio Pryce-Jones: "Reading & Writing: A Personal Account" (ler e escrever: um relato pessoal). O velho historiador britânico sorriu e disse que V.S. Naipaul não era propriamente europeu. Bom, etnicamente, talvez não seja. Mas é difícil encontrar melhor herdeiro de Kipling ou Conrad deste lado do Atlântico.
Citei Naipaul e esqueci Sebald. Injusto. Na verdade, Sebald é a voz mais poderosamente original (e radical) da literatura européia das últimas décadas. W.G. Sebald nasceu em 1944, na Alemanha, quando o fim do Terceiro Reich era certo. Emigrou, estudou e ensinou literatura européia no Reino Unido. Morreu em acidente de carro, corria dezembro de 2001, pouco depois da publicação de "Austerlitz", uma obra-prima facilmente comparável ao melhor de Borges. Acidente de carro: ainda está por fazer a história dos escritores mortos acidentalmente (e precocemente) nas estradas da Europa. Sebald é um caso. Camus é outro. Mas divago.
"Campo Santo" é o último Sebald disponível. Este livro póstumo, dividido em duas partes e superiormente editado e traduzido (por Sven Meyer e Anthea Bell, respectivamente), apresenta ensaios e pequenos apontamentos escritos durante 20 anos. Todos eles valem o preço e o esforço.
A primeira parte é Sebald puro: o escritor viaja pela Córsega, de Ajaccio a Campo Santo, visitando o berço de Napoleão e descrevendo a vivência dos locais com a memória, o luto e a morte. Sebald não oferece nenhuma chave de leitura para compreender esta estranha deambulação. Não precisa. Quando recuamos a Napoleão, estamos, indiretamente, a falar da Alemanha. Primeiro, porque os sonhos imperialistas de Napoleão conduziram as Províncias germânicas a um movimento crescente de afirmação contra-iluminista que, na sua dimensão mais extrema, acabaria por gerar os nacionalismos fétidos do século 20. E, depois, porque Shelley ou Keats, nas suas efabulações heróicas, estavam errados: Napoleão ofereceu o paradigma do tirano moderno, que Hitler acabaria por personificar.
Mas a visita à Córsega serve também como meditação sobre a morte: sobre a forma como os locais preservam ainda a memória física dos seus antepassados, ao contrário das sociedades urbanizadas onde vivemos e morremos. "Para onde vão eles", pergunta Sebald, "os mortos de Buenos Aires ou São Paulo, da cidade do México, de Lagos e do Cairo, de Xangai e Bombaim?". Um tempo sem espaço físico para os mortos é também um tempo sem possibilidade de memória: passamos pelo mundo e, na hora final, é como se nunca tivéssemos cruzado estas terras. Passamos sem testemunho. Passamos sem testemunhas. Somos feitos de esquecimento e invisibilidade.
É contra o esquecimento e a invisibilidade que se constrói a literatura de Sebald. E como evitar esse apagamento? Pela memória, pela possibilidade de memória. Por isso a prosa de Sebald surge marcada por uma desesperada tentativa de resgatar o passado: os seus livros são conspirações melancólicas e ambíguas de fatos e ficções, palavras e fotografias. E mortos, muitos mortos, que convivem naturalmente com os vivos: Nabokov, Kafka e Bruce Chatwin surgem na segunda parte de "Campo Santo". E, claro, surge também a Alemanha fantasmagórica pós-1945. O ensaio "Between History and Natural History" (entre a história e a história natural) deve ser lido como semente de um livro já editado na Europa, intitulado "On the Natural History of Destruction" (sobre a história natural da destruição). Ambos os trabalhos colocam igual pergunta: por que motivo os escritores e intelectuais alemães foram incapazes de escrever e refletir sobre a destruição tangível, real, urbana em solo próprio? Resposta de Sebald: porque muitos a negaram; e muitos outros viram na desagregação física uma forma de purificação pelas chamas. A culpa tem abismos que o abismo desconhece.
Sebald, Naipaul, Camus: citei os dois últimos no início e, lendo "Campo Santo", percebo por quê. A prosa de Sebald, como os relatos de Naipaul, é uma busca contínua do lugar: do lugar que se teve, que se perdeu e que não existe mais. Em Sebald, como em Naipaul, os seres habitam purgatórios eternos, onde estão condenados a errar. Sempre, e sempre, e sempre: como a pedra de Sísifo que rola montanha acima, montanha abaixo. E que não pára jamais.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

Campo Santo
Autor:
W.G. Sebald
Editora: Hamish Hamilton
Quanto: 16,99 libras (R$ 50, 227 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.co.uk


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