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LIVROS
ENSAIOS
Obra póstuma do alemão W.G. Sebald revive a Alemanha pós-1945
"Campo Santo" procura resgatar o passado europeu
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Aqui há uns anos, num almoço em Lisboa, perguntava o
historiador britânico David
Pryce-Jones se existia algum escritor europeu capaz de rivalizar
com Roth ou Updike. Ele acreditava que não. A incapacidade do
continente para gerar um escritor
relevante era a prova acabada de
que a Europa estava, precisamente, acabada.
Na altura, discordei. E, numa
sugestão nada inocente, sugeri
V.S. Naipaul, que dedicou um dos
seus livros ao próprio Pryce-Jones: "Reading & Writing: A Personal Account" (ler e escrever:
um relato pessoal). O velho historiador britânico sorriu e disse que
V.S. Naipaul não era propriamente europeu. Bom, etnicamente,
talvez não seja. Mas é difícil encontrar melhor herdeiro de Kipling ou Conrad deste lado do
Atlântico.
Citei Naipaul e esqueci Sebald.
Injusto. Na verdade, Sebald é a
voz mais poderosamente original
(e radical) da literatura européia
das últimas décadas. W.G. Sebald
nasceu em 1944, na Alemanha,
quando o fim do Terceiro Reich
era certo. Emigrou, estudou e ensinou literatura européia no Reino Unido. Morreu em acidente de
carro, corria dezembro de 2001,
pouco depois da publicação de
"Austerlitz", uma obra-prima facilmente comparável ao melhor
de Borges. Acidente de carro: ainda está por fazer a história dos escritores mortos acidentalmente (e
precocemente) nas estradas da
Europa. Sebald é um caso. Camus
é outro. Mas divago.
"Campo Santo" é o último Sebald disponível. Este livro póstumo, dividido em duas partes e superiormente editado e traduzido
(por Sven Meyer e Anthea Bell,
respectivamente), apresenta ensaios e pequenos apontamentos
escritos durante 20 anos. Todos
eles valem o preço e o esforço.
A primeira parte é Sebald puro:
o escritor viaja pela Córsega, de
Ajaccio a Campo Santo, visitando
o berço de Napoleão e descrevendo a vivência dos locais com a memória, o luto e a morte. Sebald
não oferece nenhuma chave de
leitura para compreender esta estranha deambulação. Não precisa. Quando recuamos a Napoleão,
estamos, indiretamente, a falar da
Alemanha. Primeiro, porque os
sonhos imperialistas de Napoleão
conduziram as Províncias germânicas a um movimento crescente
de afirmação contra-iluminista
que, na sua dimensão mais extrema, acabaria por gerar os nacionalismos fétidos do século 20. E,
depois, porque Shelley ou Keats,
nas suas efabulações heróicas, estavam errados: Napoleão ofereceu o paradigma do tirano moderno, que Hitler acabaria por
personificar.
Mas a visita à Córsega serve
também como meditação sobre a
morte: sobre a forma como os locais preservam ainda a memória
física dos seus antepassados, ao
contrário das sociedades urbanizadas onde vivemos e morremos.
"Para onde vão eles", pergunta
Sebald, "os mortos de Buenos Aires ou São Paulo, da cidade do
México, de Lagos e do Cairo, de
Xangai e Bombaim?". Um tempo
sem espaço físico para os mortos
é também um tempo sem possibilidade de memória: passamos pelo mundo e, na hora final, é como
se nunca tivéssemos cruzado estas terras. Passamos sem testemunho. Passamos sem testemunhas.
Somos feitos de esquecimento e
invisibilidade.
É contra o esquecimento e a invisibilidade que se constrói a literatura de Sebald. E como evitar
esse apagamento? Pela memória,
pela possibilidade de memória.
Por isso a prosa de Sebald surge
marcada por uma desesperada
tentativa de resgatar o passado: os
seus livros são conspirações melancólicas e ambíguas de fatos e
ficções, palavras e fotografias. E
mortos, muitos mortos, que convivem naturalmente com os vivos: Nabokov, Kafka e Bruce
Chatwin surgem na segunda parte de "Campo Santo". E, claro,
surge também a Alemanha fantasmagórica pós-1945. O ensaio
"Between History and Natural
History" (entre a história e a história natural) deve ser lido como
semente de um livro já editado na
Europa, intitulado "On the Natural History of Destruction" (sobre
a história natural da destruição).
Ambos os trabalhos colocam
igual pergunta: por que motivo os
escritores e intelectuais alemães
foram incapazes de escrever e refletir sobre a destruição tangível,
real, urbana em solo próprio?
Resposta de Sebald: porque muitos a negaram; e muitos outros viram na desagregação física uma
forma de purificação pelas chamas. A culpa tem abismos que o
abismo desconhece.
Sebald, Naipaul, Camus: citei os
dois últimos no início e, lendo
"Campo Santo", percebo por quê.
A prosa de Sebald, como os relatos de Naipaul, é uma busca contínua do lugar: do lugar que se teve,
que se perdeu e que não existe
mais. Em Sebald, como em Naipaul, os seres habitam purgatórios eternos, onde estão condenados a errar. Sempre, e sempre, e
sempre: como a pedra de Sísifo
que rola montanha acima, montanha abaixo. E que não pára jamais.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
Campo Santo
Autor: W.G. Sebald
Editora: Hamish Hamilton
Quanto: 16,99 libras (R$ 50, 227 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.co.uk
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