São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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O futebol na era do maneirismo

Para crítico cultural, futebol de Ronaldinho Gaúcho faz esporte se aproximar do basquete na finalidade "midiática" das jogadas

Flávio Florido/Folha Imagem
Ronaldinho Gaúcho em treino com a seleção brasileira em Konigstein, na Alemanha; jogador expressa "maneirismo" no futebol


NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Futebol também é cultura (claro). Mas os entrevistadores mal haviam se acomodado à sua frente e Lorenzo Mammì, 49, ameaçava jogar na retranca: "Não tenho teoria formada sobre o futebol". Um dos principais críticos de cultura do país, autor de ensaios fundamentais sobre música brasileira e artes visuais, o romano radicado no Brasil há quase duas décadas se recusa a traçar paralelos automáticos e rasteiros entre sociedades e seus estilos de jogar bola. Feitas as ressalvas, diz, na conversa proposta pela Folha sobre o jogo, que o futebol é um esporte mais aberto ao estilo -e portanto, de alguma maneira, mais próximo da arte- que outros, e dá margem a uma leitura que vê a sua forma atual como resultado de impasses semelhantes aos que atravessam o mundo das artes. Mammì defende que o estilo dos craques atuais da seleção brasileira não representa uma volta ao futebol-arte de 70 ou de 82. É algo novo. Mais espetáculo que arte. Em resumo, uma espécie de "maneirismo". "Há mais maneirismo em todos os campos da cultura", ele diz. "As questões fundamentais de música, de arte, de cultura -acho até, do futebol, se você considerá-lo uma arte- foram colocadas 30, 40 anos atrás. Estamos fazendo variações de estilo em cima de questões que são mais antigas." No campo do futebol, esse maneirismo se manifestaria na espetacularização das jogadas -principalmente nas do craque da camisa 10 do Brasil. "O Ronaldinho Gaúcho é um jogador completamente midiático. Há jogadas que são treinadas para o clipe da Nike." A seguir, trechos da entrevista, feita na véspera da estréia do Brasil contra a Croácia.  

FOLHA - Há alguma relação entre o futebol de cada país e suas visões de mundo, sociedades etc.?
LORENZO MAMMÌ
- Não tenho teoria formada sobre o futebol. Mas, quando vim da Itália, eu achava que estava vendo o mesmo jogo que os brasileiros. E percebi que as pessoas olham coisas diferentes no futebol. Naqueles gols em que o Romário, por exemplo, driblava uma defesa inteira, eu comentava: "Mas que mancada dos zagueiros". Para os brasileiros, o zagueiro estava ali para isso mesmo: ser ocasião do drible do Romário. Há um texto do Chico Buarque, que adoro, que faz a diferença entre os donos da bola -a escola sul-americana- e os donos do campo -a européia. O futebol tem essa possibilidade, muito mais do que outros jogos, de poder ser lido a partir de culturas diferentes.

FOLHA - Como assim?
MAMMÌ
- Você não tem essa mobilidade para ler um jogo de vôlei. Você tem regras, mas não tem a possibilidade de ver coisas diferentes, essas variantes.

FOLHA - Essas suas impressões sobre o jogo quando chegou ao país se casavam com o modo como você percebia a sociedade brasileira?
MAMMÌ
- Tenho um pouco de medo de fazer insinuações que possam parecer ufanistas, ao falar sobre "jeitinho" ou "criatividade". Não sei. Evidente que a cultura da bola no Brasil se dá na improvisação, no momento, e não numa estruturação de jogo... Está mudando. Em 94, já era o Brasil estruturado. Um time muito pouco amado, com a exceção do Romário, e com o qual os brasileiros se identificam muito pouco até hoje. Aí começou a mudar um pouco a coisa. O Brasil virou exportador de goleiros e de zagueiros. Dá a impressão de que as coisas estão se misturando.

FOLHA - Mas, na Europa, a Itália é considerada mais próxima ao estilo sul-americano, não é?
MAMMÌ
- É mais latina, sim. Há uma expressão na Alemanha, para elogiar uma jogada, que é dizer que ela foi feita "como no manual". O que aqui seria quase uma ofensa. A Itália sempre teve essa coisa intermediária, de ter uma organização defensiva bastante estruturada e um ou dois geninhos no meio. O sujeito que, de repente, por uma iluminação individual, decide um jogo que parecia perdido.

FOLHA - O sr. mencionou 94, mas o futebol brasileiro muda de lá para cá também.
MAMMÌ
- Muda, mas não sei se volta a ser o que era antes. Porque entrou a coisa da mídia no futebol, inclusive americana. O futebol está se "basquetizando" um pouco. O Ronaldinho Gaúcho é um jogador completamente midiático. Há jogadas que são treinadas para o clipe da Nike. Ele é um extraordinário jogador, não estou falando mal. Mas, por exemplo, quando ele passa a bola e vira a cabeça para o lado contrário. Não serve para nada, mas, no clipe, na imagem, fica ótimo. Se há uma volta à espetacularidade, é um pouco nesse sentido, já é uma espetacularidade filmada.

FOLHA - É mais maneirista?
MAMMÌ
- É mais maneirista. Mas há mais maneirismo em todos os campos da cultura. Estamos num período maneirista. Em arte, literatura, música. Espetacularização é um elemento do maneirismo. As questões fundamentais de música, de arte, de cultura -acho até, do futebol, se você considerá-lo uma arte- foram colocadas 30, 40 anos atrás. Estamos fazendo variações de estilo em cima de questões que são mais antigas. Você não tem uma novidade forte na música depois dos anos 70. Não tem. Está retrabalhando o que já fez antes. Na arte a mesma coisa. Futebol é difícil, porque está amarrado a uma questão fundamental. Afinal, você tem que fazer gol. Isso impede que se seja maneirista demais. No final, tem que pôr a bola lá dentro, de joelho, do jeito que for. Isso salva um pouco.

FOLHA - Mudou sua percepção sobre o jogo depois que chegou ao Brasil?
MAMMÌ
- Mudou completamente a capacidade de ver o jogo com a bola no pé, que eu não tinha tanto. Mas mantenho ainda o prazer italiano do zero a zero. Tenho ídolos que são grandes zagueiros.


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