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O futebol na era do maneirismo
Para crítico cultural, futebol de Ronaldinho Gaúcho faz esporte se aproximar do basquete na finalidade "midiática" das jogadas
Flávio Florido/Folha Imagem
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Ronaldinho Gaúcho em treino com a seleção brasileira em Konigstein, na Alemanha; jogador expressa "maneirismo" no futebol |
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Futebol também é cultura
(claro). Mas os entrevistadores
mal haviam se acomodado à
sua frente e Lorenzo Mammì,
49, ameaçava jogar na retranca:
"Não tenho teoria formada sobre o futebol".
Um dos principais críticos de
cultura do país, autor de ensaios fundamentais sobre música brasileira e artes visuais, o
romano radicado no Brasil há
quase duas décadas se recusa a
traçar paralelos automáticos e
rasteiros entre sociedades e
seus estilos de jogar bola.
Feitas as ressalvas, diz, na
conversa proposta pela Folha
sobre o jogo, que o futebol é um
esporte mais aberto ao estilo
-e portanto, de alguma maneira, mais próximo da arte- que
outros, e dá margem a uma leitura que vê a sua forma atual
como resultado de impasses
semelhantes aos que atravessam o mundo das artes.
Mammì defende que o estilo
dos craques atuais da seleção
brasileira não representa uma
volta ao futebol-arte de 70 ou
de 82. É algo novo. Mais espetáculo que arte. Em resumo,
uma espécie de "maneirismo".
"Há mais maneirismo em todos os campos da cultura", ele
diz. "As questões fundamentais
de música, de arte, de cultura
-acho até, do futebol, se você
considerá-lo uma arte- foram
colocadas 30, 40 anos atrás. Estamos fazendo variações de estilo em cima de questões que
são mais antigas."
No campo do futebol, esse
maneirismo se manifestaria na
espetacularização das jogadas
-principalmente nas do craque da camisa 10 do Brasil. "O
Ronaldinho Gaúcho é um jogador completamente midiático.
Há jogadas que são treinadas
para o clipe da Nike."
A seguir, trechos da entrevista, feita na véspera da estréia
do Brasil contra a Croácia.
FOLHA - Há alguma relação entre o
futebol de cada país e suas visões de
mundo, sociedades etc.?
LORENZO MAMMÌ - Não tenho
teoria formada sobre o futebol.
Mas, quando vim da Itália, eu
achava que estava vendo o mesmo jogo que os brasileiros. E
percebi que as pessoas olham
coisas diferentes no futebol.
Naqueles gols em que o Romário, por exemplo, driblava
uma defesa inteira, eu comentava: "Mas que mancada dos zagueiros". Para os brasileiros, o
zagueiro estava ali para isso
mesmo: ser ocasião do drible
do Romário.
Há um texto do Chico Buarque, que adoro, que faz a diferença entre os donos da bola -a
escola sul-americana- e os donos do campo -a européia.
O futebol tem essa possibilidade, muito mais do que outros
jogos, de poder ser lido a partir
de culturas diferentes.
FOLHA - Como assim?
MAMMÌ - Você não tem essa
mobilidade para ler um jogo de
vôlei. Você tem regras, mas não
tem a possibilidade de ver coisas diferentes, essas variantes.
FOLHA - Essas suas impressões sobre o jogo quando chegou ao país se
casavam com o modo como você
percebia a sociedade brasileira?
MAMMÌ - Tenho um pouco de
medo de fazer insinuações que
possam parecer ufanistas, ao
falar sobre "jeitinho" ou "criatividade". Não sei.
Evidente que a cultura da bola no Brasil se dá na improvisação, no momento, e não numa
estruturação de jogo... Está mudando. Em 94, já era o Brasil estruturado. Um time muito pouco amado, com a exceção do
Romário, e com o qual os brasileiros se identificam muito
pouco até hoje. Aí começou a
mudar um pouco a coisa. O Brasil virou exportador de goleiros
e de zagueiros. Dá a impressão
de que as coisas estão se misturando.
FOLHA - Mas, na Europa, a Itália é
considerada mais próxima ao estilo
sul-americano, não é?
MAMMÌ - É mais latina, sim. Há
uma expressão na Alemanha,
para elogiar uma jogada, que é
dizer que ela foi feita "como no
manual". O que aqui seria quase uma ofensa.
A Itália sempre teve essa coisa intermediária, de ter uma organização defensiva bastante
estruturada e um ou dois geninhos no meio. O sujeito que, de
repente, por uma iluminação
individual, decide um jogo que
parecia perdido.
FOLHA - O sr. mencionou 94, mas o
futebol brasileiro muda de lá para cá
também.
MAMMÌ - Muda, mas não sei se
volta a ser o que era antes. Porque entrou a coisa da mídia no
futebol, inclusive americana. O
futebol está se "basquetizando"
um pouco. O Ronaldinho Gaúcho é um jogador completamente midiático. Há jogadas
que são treinadas para o clipe
da Nike. Ele é um extraordinário jogador, não estou falando
mal. Mas, por exemplo, quando
ele passa a bola e vira a cabeça
para o lado contrário. Não serve para nada, mas, no clipe, na
imagem, fica ótimo.
Se há uma volta à espetacularidade, é um pouco nesse sentido, já é uma espetacularidade
filmada.
FOLHA - É mais maneirista?
MAMMÌ - É mais maneirista.
Mas há mais maneirismo em
todos os campos da cultura. Estamos num período maneirista. Em arte, literatura, música.
Espetacularização é um elemento do maneirismo. As
questões fundamentais de música, de arte, de cultura -acho
até, do futebol, se você considerá-lo uma arte- foram colocadas 30, 40 anos atrás. Estamos
fazendo variações de estilo em
cima de questões que são mais
antigas.
Você não tem uma novidade
forte na música depois dos anos
70. Não tem. Está retrabalhando o que já fez antes. Na arte a
mesma coisa. Futebol é difícil,
porque está amarrado a uma
questão fundamental. Afinal,
você tem que fazer gol. Isso impede que se seja maneirista demais. No final, tem que pôr a
bola lá dentro, de joelho, do jeito que for. Isso salva um pouco.
FOLHA - Mudou sua percepção sobre o jogo depois que chegou ao
Brasil?
MAMMÌ - Mudou completamente a capacidade de ver o jogo com a bola no pé, que eu não
tinha tanto. Mas mantenho
ainda o prazer italiano do zero a
zero. Tenho ídolos que são
grandes zagueiros.
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