São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 2008

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MARCELO COELHO

Tudo normal por aqui

A "normalidade" se desmascara, revelando o poço sem fundo da violência e da barbárie

EM 29 de maio de 1942, pleno período da ocupação nazista, os judeus franceses passaram a ter de usar uma estrela amarela, "do tamanho da palma de uma mão com contorno em preto", na qual deveria estar escrita, "em letras pretas, a palavra JUDEU". Deveria ser "levada de forma bem visível no lado esquerdo do peito e costurada na roupa com força".
Em fins de junho, o senhor Raymond Berr, vice-presidente de uma grande indústria, é preso pelas autoridades numa rua de Paris. O inspetor de polícia liga para a família dele, explicando que nada teria acontecido se a estrela de Berr estivesse bem costurada.
Acontece que, em vez de costurá-la, a mulher do industrial tinha afixado a estrela com grampos e botões de pressão, para que ele pudesse usá-la em vários ternos. O inspetor acrescenta: "No campo de Drancy, as estrelas serão costuradas".
Drancy era o lugar para onde os judeus franceses eram levados, antes de embarcar para os trens a caminho de Auschwitz.
Quem conta o episódio da prisão é a filha de Raymond Berr, Hélène, num diário que está sendo publicado no Brasil pela editora Objetiva.
Os manuscritos ficaram muito tempo guardados; só em janeiro de 2008 foram lançados na França, com grande impacto. O dia-a-dia da ocupação nazista em Paris é registrado do ponto de vista de uma moça de 20 e poucos anos, bastante rica, que estuda literatura inglesa na Sorbonne e, com um grupo de amigos, reúne-se para tocar peças dos compositores Beethoven, Schubert e Bach ao violino.
O que mais aperta o coração, quando se lê "O Diário de Hélène Berr", é o fato de que sua autora só aos poucos vai tomando consciência das atrocidades que terminarão por vitimá-la.
Mesmo depois da notícia da prisão do pai, Hélène mantém suas atividades cotidianas. No dia 4 de julho, ela anota: "Dannecker [comandante da SS] ordenou a evacuação do hospital Rothschild. Todos os doentes e os recém-operados foram enviados para Drancy. Em qual estado? Com quais cuidados? É atroz.".
Logo em seguida, Hélène escreve: "Vieram Job e Breynaert. Job não quer saber de nada. Tocamos o Quinteto "A Truta". Muito bonito.".
Nesse ano de 1942, Hélène ainda está muito envolvida com seus problemas sentimentais; começa a apaixonar-se por um rapaz que, dali a alguns meses, decide abandonar Paris e ingressar na Resistência. Há leituras, piqueniques. O pai, cidadão influente, é libertado: não o levarão para Drancy; não, por enquanto.
A família teria ainda condições de fugir de Paris. Hélène acha que isso seria uma covardia, ou pelo menos uma falta de solidariedade com as demais vítimas da ocupação. Mas acrescenta: "Penso que há certo egoísmo em mim, pois todas as alegrias que experimentei estão concentradas nesta vida daqui".
Eis o que há de especialmente assustador no diário de Hélène Berr. A vida "normal", seus prazeres e rotinas, mantém-se em condições de absoluta excepcionalidade e horror.
Cada dia traz novidades hediondas, mas são poucos os que percebem a que cúmulo as coisas chegarão em breve; é como se a capacidade de toda pessoa para adaptar-se, evitando pensar no pior, e tocando a vida como dá, se revelasse decisiva para a ruína final.
Desconfiar da "normalidade", eis uma coisa que não estamos nunca preparados para fazer. E, quando a "normalidade" se desmascara de uma vez por todas, revelando o poço sem fundo da violência e da barbárie, já é tarde demais.
As deportações para os campos de extermínio começam a ser feitas. Aos poucos, Hélène se dá conta de um destino praticamente inevitável.
Cuida de crianças pequenas, cujos pais já foram levados para Auschwitz. Logo as crianças serão deportadas também. Ao mesmo tempo, Hélène continua lendo os poetas ingleses. Cita uma passagem de John Keats (1795-1821): "Esta mão viva, agora quente e capaz/ De apertar vigorosamente, iria, se se resfriasse/ no silêncio gélido do túmulo/ Tanto rondar os teus dias e gelar os teus sonhos noturnos/ que desejarias que teu coração secasse de todo o seu sangue/ Para que novamente corresse em minhas veias a vida rubra,/ E tranqüilizasse a tua consciência, vê: aqui está ela,/ Eu a estendo em tua direção".
Mais de 60 anos depois da morte de sua autora, o diário de Hélène Berr reaparece, vivo, em nossos tempos "normais"; é hora de segurá-lo em nossas mãos.


coelhofsp@uol.com.br

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