São Paulo, quinta-feira, 18 de junho de 2009

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NINA HORTA

O artesão cerebral


Muita gente acha que a função do cozinheiro é cozinhar e só. E cozinheiro precisa lá pensar?


NÃO PODERIA fazer a resenha do livro "O Artífice", de Richard Sennett (ed. Record), porque não tem nada a ver com gastronomia. Aliás, só tem, mas embrulhado com as ideias do autor em relação a práticas concretas nas artes e nas ciências. O que vai além das minhas chinelas. É, no entanto, um ensaio sobre o trabalho manual. O artesão. E quem somos nós, cozinheiros? Artesãos. Parece que demos agora para pensar. Muita gente acha que a função do cozinheiro é cozinhar e só. E cozinheiro precisa lá pensar? Que história é essa de toda cozinha ter por baixo uma filosofia? Que pretensão, vai trabalhar, neguinha, vai assar o frango e para com essa conversa.
O livro do qual falei acima oferece um bom respaldo para a auto- confiança do cozinheiro, tanto lidando com as panelas quanto pensando nelas. Na verdade, o autor busca os argumentos para uma vida material mais humana e acha que se entendermos como são feitas as coisas, se atinarmos para a importância de trabalhar com as mãos, de literalmente botar a mão na massa, recuperaríamos um impulso básico e nunca perdido, a vontade de fazer um trabalho perfeito, benfeito por si mesmo.
Na culinária, a relação entre a mão e a cabeça são óbvias. Estou com fome, o que posso fazer com esse legume duro e cheio de pétalas e com um monte de feno por dentro? É pegar, cheirar, provar cru, imaginar o gosto, cozinhar. Mas de que jeito? A técnica para fazer uma alcachofra gostosa se desenvolve através da imaginação. E daí a improvisação diante da falta de ferramentas adequadas e, logo depois, inventar as ferramentas. Quanto mais difícil, mais espertos ficamos para conseguir um resultado que nos satisfaça. Aprender com a experiência. Parece que escuto o bom e velho John Dewey.
O artífice (o cozinheiro) carrega dentro de si uma coisa especial que é o engajamento. E o engajamento não pode separar cabeça e mãos. Um serviço repetitivo e automático não leva a nada de bom e humano nem para a cabeça nem para nos expressarmos manualmente. Quando estamos tecnicamente muito bem preparados podemos sentir plenamente e pensar profundamente o que estamos fazendo e com orgulho.
Seria bom pesquisar a cozinha através dos tempos, o laboratório, o taller. Teríamos que descartar o trabalho movido pela admiração ao mestre e à tradição. A cozinha não pode ser um lugar confortável para o cozinheiro. É onde ele é levado ao aprendizado por alguém que sabe mais. Pode ser dolorido descascar mil batatas, mas é preciso.
Há que existir padrões a serem alcançados e, de preferência, o ensino não deve sair de um frio manual, e sim dos esforços de fazer o melhor possível, da curiosidade frente ao ingrediente, da vontade de mudá-lo, transformá-lo, levá-lo para outro domínio. O antropólogo Lévi-Strauss, "o Ovídio da moderna antropologia", sempre se manteve aberto ao tema da metamorfose. Para ele, o artesanato fundador é a cozinha. O cru é o mundo da natureza, tal como encontrada pelos seres humanos; o ato de cozinhar gera o mundo da cultura, a natureza metamorfoseada.
Para progredir na habilidade manual, o processo de trabalho tem que visitar outros domínios, qualquer domínio, o da pintura para as cores, o da física e química para as reações, o da música para a sensibilidade, da leitura, da dança, por que não?
Tudo tem sua valia para a metamorfose, até os passos em falso, os cul-de-sac, as estradas erradas. A capacidade de mudar, de brincar, de jogar, comparar hábitos, conviver com outros cozinheiros, ensinar e aprender, enfim, muito riso e muito siso. PS: O autor trata o assunto "receitas" com propriedade e graça. Para os cozinheiros, só essa passagem, no livro inteiro, já valeria a leitura.

ninahorta@uol.com.br


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