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BERNARDO CARVALHO
A cabeçada de Zidane
As piadas diminuíram e desapareceram de vez com a cabeçada. Todos ficaram perplexos
NINGUÉM MAIS deve
agüentar ouvir falar da
cabeçada de Zidane. Assisti à final da Copa do Mundo numa
pequena cidade do sul da França,
entre 20 torcedores bem-humorados e nada chauvinistas, ao contrário dos adolescentes bêbados que,
orgulhosos da reação violenta e, em
princípio, "anti-racista" do craque,
saíram gritando pelas ruas depois do
jogo, prontos a "enrabar" o primeiro
brasileiro, português ou italiano que
lhes passasse pela frente.
Mal dava para distinguir a ação na
pequena tela cheia de interferências
do velho televisor que nos restou, já
que os meus anfitriões zelavam por
uma vida alternativa da qual a televisão não faz parte. Seguiam fazendo
uma gracinha atrás da outra. Mas as
piadas foram diminuindo, conforme
também se alongava a partida, e desapareceram de vez com a cabeçada
de Zidane. Era difícil acreditar. Todos ficaram perplexos. Não tinha
mais graça. Era difícil conceber um
final de jogo que os tivesse deixado
mais tristes.
Nos dias seguintes, passado o choque e a estupefação, e contrariando
o resto da mídia internacional, os
jornais franceses buscaram uma explicação para o que lhes parecia tanto mais inexplicável pelo silêncio de
Zidane. E o mais terrível é que, na
contramão do resto do mundo, começaram a esboçar uma justificativa, que se manifestou em grande
parte nos editoriais, nas páginas de
opinião e nas seções de cartas. Zidane tinha afinal reagido ao insuportável, ao racismo contumaz dos europeus (que tanto Le Pen como a Liga
Norte exprimiram com precisão ao
desdenhar da seleção francesa, formada por "negros e islamitas"), o
que não apenas o tornava humano
aos olhos de seus compatriotas mas
o cobria de razão.
Na edição de terça-feira passada
do "Libération" (ainda considerado
um jornal de esquerda), falava-se,
sem coragem de assumir uma posição mais categórica, de um possível
ato "sublime" (no sentido de exprimir o inexprimível) que vinha responder a anos de humilhações racistas e à corrupção do esporte.
Em vez de abaixar a cabeça e respeitar as regras de um mundo corrompido e hipócrita, o craque a teria
perdido, reagindo como um herói
trágico à provocação de um vilão no
último ato. Não havia propriamente
um juízo de valor, mas a tentação fácil de idealizar a violência como
transgressão, como ato heróico e
verdadeiro contra a hipocrisia e a injustiça.
Dois dias depois, o mesmo jornal
publicava o artigo de um escritor israelense que exaltava a liberdade do
gesto violento como afirmação humana do indivíduo. E outro de uma
diretora de teatro que elogiava o ato
como um grito contra o racismo ao
qual estão submetidos em silêncio
os jogadores em solo europeu. O
próprio Zidane terminou por conceder que não foi o eventual racismo
dos comentários que o fez perder a
cabeça mas a referência a sua mãe e
a sua irmã. Alegou que existem "palavras mais duras do que qualquer
gesto", uma inversão à qual costumam se agarrar os censores e os paladinos da moral. A declaração, no
entanto, era um contra-senso, pois
se fosse verdadeira mais valeria ter
respondido pela palavra e não pelo
gesto.
Depois da entrevista do jogador à
televisão, quando se desculpou sem
se arrepender, o tom da opinião pública começou a mudar. Antes disso,
porém, houve tempo para o presidente Chirac recebê-lo de braços
abertos, sem nenhuma reserva, e a
provável candidata socialista à Presidência da República, Ségolène Royal, sempre tão zelosa da moral familiar, declarar sua admiração pelo
respeito que Zidane demonstrava
pela mãe e pela irmã, aparentemente as principais atingidas pelas injúrias de Materazzi.
Ninguém põe em dúvida os horrores do racismo e das injustiças sociais (muito menos aqueles que os
promovem). Infelizmente, é possível que às vezes só a violência dos
atos seja capaz de mudar esse estado
de coisas. Mas há uma grande hipocrisia e um oportunismo irresponsável em fazer a exaltação da violência contra a palavra injuriosa, como
se houvesse palavras mais duras do
que qualquer ato. O que justificaria a
violência, segundo a parte da opinião pública francesa assombrada
pelo racismo em seu próprio país,
seria a humilhação de um jogador
que cresceu sofrendo as piores injúrias por conta de sua origem. Por essa mesma lógica, se a violência for a
resposta, o que nos resta, num país
injusto, racista e escravocrata como
o Brasil, a não ser justificar a nossa
própria morte nas mãos daqueles
que de tanto ser humilhados e oprimidos teriam todas as razões para
nos matar?
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