São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2006

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BERNARDO CARVALHO

A cabeçada de Zidane

As piadas diminuíram e desapareceram de vez com a cabeçada. Todos ficaram perplexos

NINGUÉM MAIS deve agüentar ouvir falar da cabeçada de Zidane. Assisti à final da Copa do Mundo numa pequena cidade do sul da França, entre 20 torcedores bem-humorados e nada chauvinistas, ao contrário dos adolescentes bêbados que, orgulhosos da reação violenta e, em princípio, "anti-racista" do craque, saíram gritando pelas ruas depois do jogo, prontos a "enrabar" o primeiro brasileiro, português ou italiano que lhes passasse pela frente.
Mal dava para distinguir a ação na pequena tela cheia de interferências do velho televisor que nos restou, já que os meus anfitriões zelavam por uma vida alternativa da qual a televisão não faz parte. Seguiam fazendo uma gracinha atrás da outra. Mas as piadas foram diminuindo, conforme também se alongava a partida, e desapareceram de vez com a cabeçada de Zidane. Era difícil acreditar. Todos ficaram perplexos. Não tinha mais graça. Era difícil conceber um final de jogo que os tivesse deixado mais tristes.
Nos dias seguintes, passado o choque e a estupefação, e contrariando o resto da mídia internacional, os jornais franceses buscaram uma explicação para o que lhes parecia tanto mais inexplicável pelo silêncio de Zidane. E o mais terrível é que, na contramão do resto do mundo, começaram a esboçar uma justificativa, que se manifestou em grande parte nos editoriais, nas páginas de opinião e nas seções de cartas. Zidane tinha afinal reagido ao insuportável, ao racismo contumaz dos europeus (que tanto Le Pen como a Liga Norte exprimiram com precisão ao desdenhar da seleção francesa, formada por "negros e islamitas"), o que não apenas o tornava humano aos olhos de seus compatriotas mas o cobria de razão.
Na edição de terça-feira passada do "Libération" (ainda considerado um jornal de esquerda), falava-se, sem coragem de assumir uma posição mais categórica, de um possível ato "sublime" (no sentido de exprimir o inexprimível) que vinha responder a anos de humilhações racistas e à corrupção do esporte.
Em vez de abaixar a cabeça e respeitar as regras de um mundo corrompido e hipócrita, o craque a teria perdido, reagindo como um herói trágico à provocação de um vilão no último ato. Não havia propriamente um juízo de valor, mas a tentação fácil de idealizar a violência como transgressão, como ato heróico e verdadeiro contra a hipocrisia e a injustiça.
Dois dias depois, o mesmo jornal publicava o artigo de um escritor israelense que exaltava a liberdade do gesto violento como afirmação humana do indivíduo. E outro de uma diretora de teatro que elogiava o ato como um grito contra o racismo ao qual estão submetidos em silêncio os jogadores em solo europeu. O próprio Zidane terminou por conceder que não foi o eventual racismo dos comentários que o fez perder a cabeça mas a referência a sua mãe e a sua irmã. Alegou que existem "palavras mais duras do que qualquer gesto", uma inversão à qual costumam se agarrar os censores e os paladinos da moral. A declaração, no entanto, era um contra-senso, pois se fosse verdadeira mais valeria ter respondido pela palavra e não pelo gesto.
Depois da entrevista do jogador à televisão, quando se desculpou sem se arrepender, o tom da opinião pública começou a mudar. Antes disso, porém, houve tempo para o presidente Chirac recebê-lo de braços abertos, sem nenhuma reserva, e a provável candidata socialista à Presidência da República, Ségolène Royal, sempre tão zelosa da moral familiar, declarar sua admiração pelo respeito que Zidane demonstrava pela mãe e pela irmã, aparentemente as principais atingidas pelas injúrias de Materazzi.
Ninguém põe em dúvida os horrores do racismo e das injustiças sociais (muito menos aqueles que os promovem). Infelizmente, é possível que às vezes só a violência dos atos seja capaz de mudar esse estado de coisas. Mas há uma grande hipocrisia e um oportunismo irresponsável em fazer a exaltação da violência contra a palavra injuriosa, como se houvesse palavras mais duras do que qualquer ato. O que justificaria a violência, segundo a parte da opinião pública francesa assombrada pelo racismo em seu próprio país, seria a humilhação de um jogador que cresceu sofrendo as piores injúrias por conta de sua origem. Por essa mesma lógica, se a violência for a resposta, o que nos resta, num país injusto, racista e escravocrata como o Brasil, a não ser justificar a nossa própria morte nas mãos daqueles que de tanto ser humilhados e oprimidos teriam todas as razões para nos matar?


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