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Livro traz relato do engraxate que sabia demais
O paulista "Gil", diz autor, foi baseado em carioca do complexo do Alemão, que fala à Folha sobre sua trajetória em Nova York
Ficção vai virar filme, com Matt Damon previsto para interpretar o papel do jornalista; está indefinido quem interpreta brasileiro
DO ENVIADO A NOVA YORK
Aguilar Benicio, o Gil, nasceu
em Santo André (SP) e mudou-se para Nova York em 1992,
com pais e irmã, como tantas
famílias, para tentar a vida. Ex-despachante e bonachão, seu
pai vira o decano dos engraxates em Newark, em Nova
Jersey. Endurecida, a mãe teve
de abandonar as aulas que dava
no Brasil e limpa casas.
Esperto, o menino trabalha
um tempo numa engraxataria,
mas logo cai nas graças do
pessoal da corretora Medved,
Morningstar, onde passa a dar
expediente como engraxate
particular.
Em "Confession$ of a Wall
Street Shoeshine Boy", ele fala
um "patois" de inglês que parece vertido do português por um
software de tradução.
Diz "womens" em vez de
"women" (mulheres),
"peoples" em vez de "people"
(pessoas) e adora porcentagens
(como na frase "68% das mulheres eram bonitas na festa") e
a palavra "huge" (enorme), que
berra em letras maiúsculas, como em "HUGE". É fanático pelo Santos, se dá bem com as
mulheres e namora uma colombiana muito brava.
Conhece ainda da época da
engraxataria o jornalista Greg
Waggoner, que costumava freqüentar o lugar, e o reencontra
por acaso anos depois. Retomam contato, e Gil conta a
Greg que pode ter ouvido um
caso de "inside trading" e que
seus patrões o estão cercando
para que ele se envolva na história, que prevê uma viagem
suspeita às Bahamas. Prestes a
perder emprego na revista
"Glossy", em que escreve perfis
de celebridades, Greg vê na denúncia uma oportunidade de
dar a volta na carreira.
"Confession$..." é um bom
primeiro livro, de um autor, o
jornalista Doug Stumpf, que
claramente sabe o que está fazendo. Atualmente na "Vanity
Fair", foi o mais longevo editor
de David Halbertstam, "o" correspondente norte-americano
que cobriu a Guerra do Vietnã,
recém-falecido.
A apreensão de Stumpf do
mundo dos brasileiros ilegais
na área de Nova York é bastante decente, inclusive o inglês
aportuguesado que os filhos
dos imigrantes mais velhos falam, como Gil. Há erros pontuais aqui e ali ("bacalhao", em
vez de bacalhau, ou escrever
que a tradução de "caipirinha"
é "despencar"), mas nada grave.
É a história atrás da história,
no entanto, o mais interessante. Em nosso primeiro contato,
Stumpf não quer falar se o brasileiro que o inspirou existe
mesmo ou não. No segundo, já
admite sua existência e conta
pedaços de sua história, mas
pede que ele seja tratado como
"Gil". Então, ele vira "Flamenguista". Dois meses de negociações depois, a Folha almoçou
na sexta passada com Stumpf e
o próprio "Flamenguista", na
verdade Murilo Junior, no restaurante Brazil Grill, em
Manhattan, cenário de várias
passagens do livro.
Caipirinhas vão sendo consumidas, e os fatos aos poucos
se revelam -o repórter se comprometeu a preservar detalhes
que possam pôr em risco o emprego do brasileiro e outros aspectos de sua segurança.
Complexo do Alemão
Atarracado e musculoso, cabelo raspado e óculos escuros à
jogador de futebol/pagodeiro,
"Gil" é, na verdade, carioca do
complexo do Alemão, de triste
lembrança no noticiário. Mora
em Astoria, no Queens, bairro
que reúne a comunidade brasileira em Nova York, e a história
de seus pais é a mesma de Gil
-assim como a maneira como
conheceu Stumpf.
Flamenguista doente, traz
uma tatuagem do brasão do time em uma das pernas, além da
frase "born to be alone" (nascido para ser sozinho) nas costas.
Aos 28, trabalha ainda hoje numa das maiores corretoras de
valores de Wall Street -após
nossa conversa e algumas indiscrições do próprio, foi fácil
descobrir qual (aliás, há uma
dica do nome no livro).
Agora, Stumpf e ele afirmam
que seu nome é mesmo "Murilo Junior", mas de novo indiscrições na conversa e dicas no
livro dão a entender que esse
pode ser um novo pseudônimo.
Para fazer o livro, diz Stumpf,
foram usadas todas histórias
contadas por Murilo ao longo
dos anos, reagrupadas em alguns personagens-chave, que
tiveram os nomes mudados. Já
o jornalista ele tirou de conversas com seis colegas seus da
"Vanity Fair", o espelho evidente da "Glossy", com seu editor mercurial como Graydon
Carter -que, aliás, diz ter gostado de "Confession$...".
O caso da falcatrua existiu
mesmo, mas não na empresa de
Murilo, e continua sob investigação da SEC, sigla para Securitites and Exchange Commission, a Comissão de Valores
Mobiliários dos EUA. "Nem tudo é 100% verdadeiro, mas tudo é 100% autêntico", resume
Stumpf.
No livro, Gil quer se dar bem
para abrir uma pousada no litoral norte paulista; na vida real,
Murilo quer cursar faculdade e
virar promoter. O sonho do último está mais próximo de
acontecer. Depois de resolver
incorporar o rapaz à turnê de
lançamento do livro, Stumpf
tem almoços marcados com relações-públicas de grifes como
Gucci e Ferragamo, que podem
se interessar.
Mais ainda depois de o filme
baseado no livro estrear. Os direitos já foram comprados pela
Warner, e Matt Damon deve
interpretar o jornalista. Há
uma discussão na mesa sobre
quem deverá ser o brasileiro.
Rodrigo Santoro? "Muito velho", decreta Murilo. "E não me
venha com Reynaldo Gianecchini", diz Stumpf, que nunca
foi ao Brasil mas é fã de Vera
Fischer, "Uga-Uga", "O Clone"
e caipirinha. E sabe falar "Vai
com Deus".
(SÉRGIO DÁVILA)
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