São Paulo, quarta-feira, 18 de julho de 2007

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Livro traz relato do engraxate que sabia demais

O paulista "Gil", diz autor, foi baseado em carioca do complexo do Alemão, que fala à Folha sobre sua trajetória em Nova York

Ficção vai virar filme, com Matt Damon previsto para interpretar o papel do jornalista; está indefinido quem interpreta brasileiro

DO ENVIADO A NOVA YORK

Aguilar Benicio, o Gil, nasceu em Santo André (SP) e mudou-se para Nova York em 1992, com pais e irmã, como tantas famílias, para tentar a vida. Ex-despachante e bonachão, seu pai vira o decano dos engraxates em Newark, em Nova Jersey. Endurecida, a mãe teve de abandonar as aulas que dava no Brasil e limpa casas.
Esperto, o menino trabalha um tempo numa engraxataria, mas logo cai nas graças do pessoal da corretora Medved, Morningstar, onde passa a dar expediente como engraxate particular.
Em "Confession$ of a Wall Street Shoeshine Boy", ele fala um "patois" de inglês que parece vertido do português por um software de tradução.
Diz "womens" em vez de "women" (mulheres), "peoples" em vez de "people" (pessoas) e adora porcentagens (como na frase "68% das mulheres eram bonitas na festa") e a palavra "huge" (enorme), que berra em letras maiúsculas, como em "HUGE". É fanático pelo Santos, se dá bem com as mulheres e namora uma colombiana muito brava.
Conhece ainda da época da engraxataria o jornalista Greg Waggoner, que costumava freqüentar o lugar, e o reencontra por acaso anos depois. Retomam contato, e Gil conta a Greg que pode ter ouvido um caso de "inside trading" e que seus patrões o estão cercando para que ele se envolva na história, que prevê uma viagem suspeita às Bahamas. Prestes a perder emprego na revista "Glossy", em que escreve perfis de celebridades, Greg vê na denúncia uma oportunidade de dar a volta na carreira.
"Confession$..." é um bom primeiro livro, de um autor, o jornalista Doug Stumpf, que claramente sabe o que está fazendo. Atualmente na "Vanity Fair", foi o mais longevo editor de David Halbertstam, "o" correspondente norte-americano que cobriu a Guerra do Vietnã, recém-falecido.
A apreensão de Stumpf do mundo dos brasileiros ilegais na área de Nova York é bastante decente, inclusive o inglês aportuguesado que os filhos dos imigrantes mais velhos falam, como Gil. Há erros pontuais aqui e ali ("bacalhao", em vez de bacalhau, ou escrever que a tradução de "caipirinha" é "despencar"), mas nada grave.
É a história atrás da história, no entanto, o mais interessante. Em nosso primeiro contato, Stumpf não quer falar se o brasileiro que o inspirou existe mesmo ou não. No segundo, já admite sua existência e conta pedaços de sua história, mas pede que ele seja tratado como "Gil". Então, ele vira "Flamenguista". Dois meses de negociações depois, a Folha almoçou na sexta passada com Stumpf e o próprio "Flamenguista", na verdade Murilo Junior, no restaurante Brazil Grill, em Manhattan, cenário de várias passagens do livro.
Caipirinhas vão sendo consumidas, e os fatos aos poucos se revelam -o repórter se comprometeu a preservar detalhes que possam pôr em risco o emprego do brasileiro e outros aspectos de sua segurança.

Complexo do Alemão
Atarracado e musculoso, cabelo raspado e óculos escuros à jogador de futebol/pagodeiro, "Gil" é, na verdade, carioca do complexo do Alemão, de triste lembrança no noticiário. Mora em Astoria, no Queens, bairro que reúne a comunidade brasileira em Nova York, e a história de seus pais é a mesma de Gil -assim como a maneira como conheceu Stumpf.
Flamenguista doente, traz uma tatuagem do brasão do time em uma das pernas, além da frase "born to be alone" (nascido para ser sozinho) nas costas. Aos 28, trabalha ainda hoje numa das maiores corretoras de valores de Wall Street -após nossa conversa e algumas indiscrições do próprio, foi fácil descobrir qual (aliás, há uma dica do nome no livro).
Agora, Stumpf e ele afirmam que seu nome é mesmo "Murilo Junior", mas de novo indiscrições na conversa e dicas no livro dão a entender que esse pode ser um novo pseudônimo.
Para fazer o livro, diz Stumpf, foram usadas todas histórias contadas por Murilo ao longo dos anos, reagrupadas em alguns personagens-chave, que tiveram os nomes mudados. Já o jornalista ele tirou de conversas com seis colegas seus da "Vanity Fair", o espelho evidente da "Glossy", com seu editor mercurial como Graydon Carter -que, aliás, diz ter gostado de "Confession$...".
O caso da falcatrua existiu mesmo, mas não na empresa de Murilo, e continua sob investigação da SEC, sigla para Securitites and Exchange Commission, a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA. "Nem tudo é 100% verdadeiro, mas tudo é 100% autêntico", resume Stumpf.
No livro, Gil quer se dar bem para abrir uma pousada no litoral norte paulista; na vida real, Murilo quer cursar faculdade e virar promoter. O sonho do último está mais próximo de acontecer. Depois de resolver incorporar o rapaz à turnê de lançamento do livro, Stumpf tem almoços marcados com relações-públicas de grifes como Gucci e Ferragamo, que podem se interessar.
Mais ainda depois de o filme baseado no livro estrear. Os direitos já foram comprados pela Warner, e Matt Damon deve interpretar o jornalista. Há uma discussão na mesa sobre quem deverá ser o brasileiro. Rodrigo Santoro? "Muito velho", decreta Murilo. "E não me venha com Reynaldo Gianecchini", diz Stumpf, que nunca foi ao Brasil mas é fã de Vera Fischer, "Uga-Uga", "O Clone" e caipirinha. E sabe falar "Vai com Deus". (SÉRGIO DÁVILA)


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