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CARLOS HEITOR CONY
A ilustre casa dos seguidores de Eça de Queiroz
Anteontem, dia 16 de
agosto, fez cem anos da
morte de Eça de Queiroz. Não estou por dentro das comemorações
deste primeiro centenário, cumpri modestamente a minha parte,
numa palestra na Academia Brasileira de Letras, iniciando o ciclo
de conferências que prosseguiu
com erudita exposição de Josué
Montello e que terá outros palestrantes, do Brasil e de Portugal.
Nenhum outro autor teve tanta
popularidade, na primeira metade do século. Na minha infância,
era comum ver nas ruas, nos bondes, nos trens alguém lendo um
de seus livros. Lembro que fui cortar o cabelo na rua Rodrigo Silva,
no centro da cidade, folheava a
revista ""Careta", que era obrigatória em todas as barbearias, salas de espera de médicos e dentistas.
Um homem grosso, quase careca, estava na cadeira ao lado, lendo um Eça. Volta e meia dava
uma risada. Pelo visto, se distraía
mais do que eu, que lia as piadas
da mais conhecida revista de humor naquela época.
Outro dia, em tom baixinho, como que envergonhado, Evandro
Lins e Silva me confessou que durante muitos anos lia Eça e não
lia Machado de Assis. Só mais
tarde, como tantos outros, inclusive eu, mudou de lado.
Por falar em outro dia, outro
dia li um disparate impresso numa de nossas folhas. Alguém desejava elogiar Eça de Queiroz e
informou que ele tinha muita coisa do Nelson Rodrigues. Evidente
que tinha, mas às avessas. Nelson
é que tinha tudo do Eça, inclusive
bordões que ele, com a diferença
de uma geração, popularizou entre nós. ""As cerdas bravas do javali", o ""olho rútilo e o lábio trêmulo", o ""há alguma coisa de vacum no lento escoar das multidões", são inúmeras as expressões
que Nelson bebeu em Eça, sobretudo em Fradique Mendes -o
heterônimo mais conhecido do
autor de ""Os Maias".
Além das frases textuais que
Nelson incorporou em suas crônicas e confissões, muitos de seus
personagens mais populares foram transposições bem-feitas da
estupenda galeria de tipos criados
por Eça. Onde Nelson revelou-se
100% original, buscando o sentido trágico do homem -e nesse
ponto dando de goleada em
Eça-, foi no teatro.
Mas ninguém melhor do que
Eça, na língua portuguesa, soube
captar o ser humano no seu ridículo, na sua fragilidade de barro.
Faltou-lhe a profundidade, mas
sobrou-lhe a exatidão pontual
dos seus personagens, que, somados entre si, podem ser considerados como os mais representativos
da ficção do século 19, nela se incluindo os ingleses, franceses e
russos de gênio que penetraram
mais fundo na condição humana,
mas sem o mesmo brilho, sem a
assombrosa instantaneidade dos
tipos de Eça de Queiroz.
Ele próprio reconhecia que não
tinha o que dizer, faltava-lhe a tese, sobrava-lhe porém o modo de
dizer. E, assim como Nelson Rodrigues chupou-lhe alguns dos
bordões, Eça fez o mesmo com os
autores que admirava, principalmente Flaubert, Hugo e Dickens.
Dionélio Machado, autor de
""Os Ratos", seguramente um dos
maiores romances brasileiros, em
artigo para o ""Diário de Notícias"
de Porto Alegre (29 de maio de
1932), pinçou em Dickens a famosa cena em que Dâmaso Salcede,
desafiado por Carlos Maia para
um duelo, borra-se de medo, solicita a intervenção de amigos comuns. Enojado, Carlos Maia diz
que aceitaria uma carta de Dâmaso, pedindo desculpas e confessando que estava bêbado quando
cometeu o agravo (um artigo
num jornal de fofocas) que originaria o duelo.
Em ""Mister Pickwick", talvez o
melhor romance de Dickens
-porque parece ser o único onde
não há um órfão em primeiro
plano-, temos uma cena exatamente igual, o desafio para um
duelo, a obrigação da carta em
que o desafiado pede desculpa (""a
written apology, as an excuse")
com a confissão final de estar ""intoxicated".
Mas há o detalhe, pequenino,
sutil, que faz a grandeza de Eça
ser maior do que a originalidade
de Dickens. Dâmaso aceita que o
amigo de Carlos Maia, o João da
Ega, escreva o rascunho da carta
-que, em linhas gerais, é a mesma de Dickens. Dâmaso começa a
copiar o texto, confessando sua
infâmia, mas pára de escrever de
repente. João da Ega teme que um
raio de dignidade tenha varado o
crápula. A confissão, naqueles
termos, seria demais até para o
maior canalha do universo. Mas
a dúvida de Dâmaso é de outra
ordem. Não decifrando bem a letra de Ega, ele pergunta se ""embriaguez" se escreve com ""m" ou
com ""n".
O exemplo serve para mostrar
as duas faces da obra de Eça de
Queiroz, a falta de originalidade
e a formidável força do detalhe.
Isso explica o fascínio que ela
exerceu em seu tempo, que teve
imitadores, e, como Renan e Anatole France, até hoje tem os seus
devotos.
Seus livros continuam sendo
dos mais reeditados, e seus romances são constantemente
adaptados para o teatro, o cinema e a TV. Suas histórias perdem
muito quando transpostas para a
linguagem visual, pois o forte de
Eça não é a trama, mas o uso magistral das palavras, sobretudo
nos ""cacos", pequenos detalhes
que ele esparrama em seus textos.
Um de seus personagens, o conselheiro Acácio, que é apenas um
caco tamanho-família jogado numa trama de adultério, é o mais
citado da novelística portuguesa.
Pelo menos eu o cito quase todos
os dias.
Leia e veja mais no Almanaque:
Centenário de Eça de Queiroz
Ilustração de Belmonte
Conto de Eça de Queiroz
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