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São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2003

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MÚSICA

Grupo TM+, que toca no Cultura Artística, encerrou semana MusArtS com peças de Boulez, Saariaho e Manoury

Batalhas contemporâneas pela tecnologia

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Nos anos heróicos da música contemporânea, as batalhas eram estéticas e ideológicas. A boa luta de nomes hoje consagrados, como Boulez, Berio e Stockhausen (sem falar nos compositores do Leste, que vieram depois) abriu caminho para outra geração, que não tem mais de se justificar. A batalha, agora, não é ideológica: é tecnológica. Veja-se o concerto de quinta passada, que encerrou a semana de inauguração do projeto MusArtS, com participação do IRCAM e de músicos do TM+ (que tocam de hoje a quarta no Cultura Artística).
Foram três peças envolvendo uso de computador: "Dialogue de l'Ombre Double" de Boulez (1925), "NoaNoa" de Kaija Saariaho (52) e "Jupiter" de Philippe Manoury (52). Cada uma escrita para um instrumento solista (clarinete ou flauta), com seu som transformado, antes ou durante a execução, por meio de softwares específicos, todos desenvolvidos no IRCAM, o Instituto de Pesquisa Acústica e Musical, fundado por Boulez em 1969, referência mundial na área.
Como explicou o diretor pedagógico Andrew Gerzso, as peças vão de um extremo a outro das possibilidades de intervenção digital. No Boulez, o clarinetista -fantástico clarinetista, Philippe Berrod- toca com a "sombra", trechos pré-gravados por ele mesmo, que se alternam com a música executada no palco.
Composto em 1985, o "Diálogo da Sombra Dupla" inspira-se, com maior ou menor proximidade, numa peça teatral de Paul Claudel. O que está em jogo, no caso, é a espacialização dos sons. A sombra varre o espaço da platéia, de um lado a outro -sem falar nas profundidades virtuais. O clarinete "ao vivo" se embrenha em labirintos delicados, uma renda de arpejos e trilos; depois silencia, na escuta de si mesmo: de si outro. Carrega seu duplo em sonhos de coincidência.
Como errar é humano, a máquina errou no começo. Deu estática. Em retrospecto, foi um momento simpático neste concerto-aula, que como quase toda aula passou um pouco do ponto. A tecnologia precisa ser explicada; a música pede outro tipo de comentário. Mas era, afinal, o encerramento de uma gloriosa semana de seminários (idealizados por Silvio Ferraz, produzidos por Regina Porto), promovidos para lançar o MusArtS -uma rede virtual integrando centros paulistas de pesquisa musical-tecnológica, financiada pela Fapesp.
Já em "NoaNoa", de 1992, o flautista (o virtuose Gilles Burgos) aciona intermitentemente um pedal, que dispara programas de reprodução e transformação sonora. Junto com Magnus Lindberg e Esa Pekka-Salonen, entre outros, Saariaho faz parte de um grupo de compositores finlandeses que ganhou renome na década de 80. Ela é a mais sensual das compositoras que trabalham com "live electronics": sua música põe lentes de aumento no mundo natural, que a gente escuta como nunca.
"NoaNoa" alude ao Taiti do impressionista Gauguin. Mas a referência é sugestiva, mais do que descritiva: o "aroma" do título torna-se metáfora para tudo o que é da ordem da sensação. As "fleurs" que o flautista fica sussurrando no bocal amplificado crescem nessa paisagem de ventos, uma natureza íntima e misteriosa, no âmago de circuitos e números. Linda peça.
Na segunda parte, era a vez de escutar a histórica "Jupiter" (87), para flauta e eletrônica, de Manoury. Foi a primeira composição a empregar o "Score Follower", programa que compara a interpretação ao vivo com a partitura gravada na memória do computador, de modo a ativar operações à medida que a música avança. Dimensão wagneriana, caráter ponderoso: pesado, relevante.
Pelo menos um conhecido jovem compositor dormia na platéia. Tinha direito, assim como tantos outros dormem em Bruckner. Naquele dia, naquela hora, era sinal de saúde. Tudo somado, a batalha vai bem, inclusive -quem diria!- tecnologicamente falando.


Avaliação:    

TM+. Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, SP, tel. 0/xx/11/ 3258-3344). Quando: de hoje a quarta, às 21h. Quanto: de R$ 50 a R$ 140.



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