São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2008

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ARTIGO

Obra nos ajuda a entender o projeto de país que perdemos

O que é que Caymmi tem? Dez características que fazem do compositor mestre atemporal de canções que se misturaram para sempre à identidade brasileira

FRANCISCO BOSCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

1 MESTRE MAIOR
Dorival Caymmi foi um mestre maior da arte da canção, a arte de pôr em relação letra e música, de casar uma coisa e outra, como se costuma dizer. Não há nenhum momento de sua concisa e primorosa obra em que essa relação esteja malfeita, em que se descubra uma imperícia ou negligência do cancionista. Ao contrário, a perfeição está em toda parte. Como disse Luiz Tatit, "cada fragmento de composição já é uma boa amostra da obra completa".

2 RIGOR BAIANO
A proverbial preguiça baiana é aqui desmentida por um rigor insuspeitado. Caymmi às vezes levava anos para terminar uma canção. E não chegou a compor muito mais do que uma centena delas, em sua vida. É que sua ética produtiva se centrava no princípio de só fazer as canções necessárias. Nesse caso, o rigor abarca uma dimensão passiva: a paciência. Caetano Veloso elucidou o modus operandi dessa ética: "É o deixar aparecer, deixar acontecer e ser extremamente responsável com relação ao que acontece".

3 ATEMPORALIDADE
Levada ao extremo, essa rigorosa mestria cria um efeito de atemporalidade, pois é como se as palavras jamais tivessem existido sem seus respectivos sons. Daí que, atemporais, elas parecem muitas vezes anônimas, folclóricas, pois o que não tem história também não pode ter autor. "Não parece coisa feita por gente", resumiu Arnaldo Antunes.

4 O MITO
Esse efeito de atemporalidade e anonimato é decisivamente reforçado pelo fato de as canções, em sua quase totalidade, inscreverem-se plenamente no mito brasileiro, que elas assim eternizam. O mito não é uma mentira, mas uma auto-imagem que revela um desejo e um projeto: a alegria, a cordialidade, a liberdade, o erotismo, a religiosidade sincrética afro-brasileira, a mestiçagem.

5 O PAI
Pois tudo isso brilha com uma rara integridade nos "sambas sacudidos" e "canções praieiras" de Caymmi, em que portanto reconhecemos nosso mito identificador. Por isso Caymmi "é o pai", como afirmou Lorenzo Mammi.

6 MODERNO
Mas isso não é tão simples. Pois Caymmi é ao mesmo tempo um cancionista moderno e até modernizador. Tom Jobim lembra que ele "passou a empregar notas de sexta e sétima maiores nos acordes menores, imprevisíveis modulações de meio-tom, coisas que ninguém usava na época".

7 PARADOXOS
Daí Antonio Risério, em seu livro "Caymmi: Uma Utopia de Lugar", que é a referência maior ao estudo crítico da obra do mestre baiano, ter apontado uma "dialética entre o novo e o velho, o arcaico e o contemporâneo, a tradição e a invenção".

8 CANÇÕES PRAIEIRAS
Tal paradoxo vem à tona com nitidez na série das "canções praieiras", que Jorge Amado elegeu com justeza como "a parte mais poderosa e permanente de suas composições". Essas canções que narram a vida de pescadores numa Itapuã mítica são tão originais que inauguram um gênero, pois não havia algo como "canções praieiras" na tradição da canção popular brasileira. Não havia e não haveria depois; é um gênero de um autor só, que nasce e morre com Caymmi.

9 SEM EXPLICAÇÃO
Com isso somos lançados ao problema da originalidade inexplicável de Caymmi. Diferentemente de talvez todos os nossos grandes cancionistas populares, Caymmi não se situa facilmente numa tradição que ele a um tempo absorve e reinventa. No gesto de João Gilberto, por exemplo, é mais fácil de compreender tanto o corte quanto a continuidade, igualmente radicais. Em Caymmi, uma coisa e outra são mais difíceis de localizar. Uma frase de Chico Buarque resume essa perplexidade: "Não vejo de onde aquilo vem".

10 PERMANÊNCIA
Seja como for, "aquilo" veio, ficou e ficará. Nas canções de Caymmi, que moram no fundo da memória coletiva do Brasil e ajudaram a construir nossa identidade (com a qual estarão para sempre misturadas), podemos mirar uma realização e uma possibilidade, uma história e um projeto. Em tempos de ódio e violência, as canções de Caymmi talvez nos ajudem a entender alguma coisa de essencial que perdemos em algum momento de nossa modernização.

FRANCISCO BOSCO, ensaísta e letrista, é autor de "Folha Explica Dorival Caymmi"



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