São Paulo, Quarta-feira, 18 de Agosto de 1999
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MÚSICA
Sambista lança CD gravado ao vivo com repertório dos 60, quando dividia palco e LPs com Elis Regina
Jair reedita, sozinho, "Dois na Bossa"

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Lançado ao segundo plano desde o tropicalismo, o sambista paulista Jair Rodrigues, 60, entrega-se, 35 anos depois do advento de seu maior sucesso, "Deixa Isso pra Lá", à revisão histórica dos anos pré-tropicalistas.
Seu novo álbum, "500 Anos de Folia" -base para os shows que ele faz hoje e amanhã, em São Paulo-, evoca os três discos ao vivo "Dois na Bossa", que ele gravou entre 1965 e 1967.
Se lá dividia o estrelato com Elis Regina (1945-82) -mãe de João Marcello Bôscoli, hoje diretor da Trama, nova gravadora de Jair-, agora enfrenta a função sozinho, afora orquestra e participações como as da bateria da Vai-Vai, do Duofel e de jovens rappers.
Além de repertório e reminiscências, "500 Anos de Folia" tem em comum com "Dois na Bossa" o fato de ser gravado ao vivo -"100% ao Vivo", como diz o subtítulo, em ironia à profusão de discos ao vivo de araque no mercado. Em entrevista à Folha, Jair mergulhou de novo no passado; leia trechos a seguir.

Folha - Como um sambista foi nascer na fronteira de São Paulo com Minas Gerais?
Jair Rodrigues -
Não sei. Era menino, em Igarapava, e, ao mesmo tempo em que se tocavam Francisco Alves, Orlando Silva, se tocavam, da parte do samba, Cyro Monteiro, Ataulfo Alves, Roberto Silva, e, do lado sertanejo, Tonico e Tinoco, Cascatinha e Inhana. Garoto, eu vazava de casa na sexta e ia assistir aos seresteiros. Fui me entrosando. O artista tem que ser eclético. Com sete anos fui parar em Nova Europa, meus pais foram trabalhar na fazenda Itaquerê. Minha mãe dizia que não íamos trabalhar sempre na roça, que era melhor que aprendêssemos uma profissão. Então fui aprender a profissão de alfaiate, com 8 anos. Conheci rapazes que gostavam muito de cantar, e me juntei a eles. Fui fazer parte de um coral de igreja, em Nova Europa.
Fui morar em São Paulo em 59, e comecei a cantar na noite. Cantava Maysa, Agostinho dos Santos, que é meu ídolo eterno, Jamelão, Almir Ribeiro, Johnny Alf.
Virei crooner do quarteto de Hermeto Paschoal. Um dia levei para ele "Deixa Isso pra Lá". Comecei: "Deixa que digam, que pensem, que falem/ deixa isso pra lá, vem pra cá...". Hermeto disse: "Que negócio é esse? Eu nunca acompanhei conversa". O gesto que faço com a mão nasceu naquela noite. Comecei a fazer o gesto, o Hermeto também fez, e o pessoal que estava na pista dançando também começou.
Depois veio a contratação pela TV Record, para apresentar junto com Elis Regina, já em 65, o programa "O Fino da Bossa". Apesar do nome, era um programa de MPB, para mostrar todas as raízes musicais. Ao mesmo tempo que vinha Johnny Alf, vinham Luiz Gonzaga, Angela Maria. Lançamos Gilberto Gil, até o pessoal da jovem guarda ia.

Folha - Mas não houve uma cisão entre os programas "O Fino da Bossa" e "Jovem Guarda"?
Jair -
Sim. Alguém quis fazer polêmica, senão ia ficar na mesmice. Criou-se um tumulto, inventaram briguinhas, para que o programa continuasse um sucesso.

Folha - Você participou da passeata contra as guitarras?
Jair -
Se eu participei? Deixa me lembrar (longo silêncio). Com certeza não participei, até porque sempre gravei com guitarra. Como posso lutar contra uma coisa que estou fazendo? Eu dava um jeito, caía fora e ninguém notava.

Folha - Era natural a formação de uma dupla com Elis?
Jair -
Quem nos descobriu foram Airton e Lolita Rodrigues, no programa "Almoço com as Estrelas". Um dia ele disse que ia aproveitar a presença de dois artistas extrovertidos, brincalhões, a "Pimentinha" e o "Cachorrão". Propôs no ar que a gente se juntasse e cantasse em dupla. Tivemos que inventar na hora. Ela começou a cantar "Deixa Isso pra Lá", eu emendei com "Upa, Neguinho", um cantou música do outro.

Folha - É verdade que foi cogitado que a dupla fosse entre Elis e Simonal, e não você?
Jair -
Não sei disso. Simonal apresentava o programa "Spotlight", na TV Tupi, e acho que o contrato dele ainda estava em vigência.

Folha - Você e Elis brigavam?
Jair -
Jamais. Não, perdão, uma vez, no ensaio, aconteceu. Ela estava ensaiando, já com público, e eu entrei pela porta da frente do teatro. Os caras me viram e começaram: "Ô, Cachorrão!". Ela parou o ensaio e disse: "Você não está vendo que estou ensaiando? Que falta de educação!". Cheguei bem perto dela e disse: "Não fala comigo dessa forma, que eu te meto a mão no pé da orelha". Ela levou aquele susto. Dois segundos depois, nos abraçamos, pedimos desculpas. Foi nossa única rusga.

Folha - Não era de esperar que você cantasse uma música do Geraldo Vandré, e aí houve "Disparada", em 1966.
Jair -
Sinceramente, não era de esperar, não. Eu já havia cantado músicas dele, mas não era muito ligado nesse tipo de música. Na noite não se pedia. Quando ouvi "Disparada", a vi como uma música nordestina, sertaneja. Adorei. Só me dei conta que era de protesto quando Vandré pediu: "Não brinque com a minha música que ela é séria". Tive vontade de meter a mão na orelha dele também, é claro que eu ia levar a sério.

Folha - Um de cada lado, Vandré e Simonal se tornaram "mártires" desse período, desapareceram musicalmente. Qual é sua análise sobre isso?
Jair -
Olha, é público e notório que Vandré ia na frente das massas nas passeatas. Mas não entendi até hoje o que aconteceu com esse menino Simonal. De repente destruíram a carreira de um artista que era sem sombra dúvida o maior showman do Brasil.

Folha - A do Vandré também foi destruída. Você acha que ele estava errado? Simonal também se envolveu em confusões, esteve nas páginas policiais.
Jair -
Cada um tem sua forma de ver as coisas, não posso dizer se ele estava errado ou certo. Sobre Simonal, não sei informar. Todos estivemos unidos até o começo de 67, aí cada um foi para um lado.

Folha - Foi nessa hora que os tropicalistas, que divergiam da música que vocês faziam, tomaram a cena, propondo um outro modelo. Isso enfraqueceu você, Elis, Simonal?
Jair -
Quando vieram propor outro modelo, claro, não entramos naquele lance de tropicalismo. Eu não tinha nada a ver com aquilo. Continuei cantando meus sambas, minhas serestas, meus baiões. Acho que o samba perdeu. Às vezes culpo alguns colegas, não sei se não quiseram lutar. Ficaram esperando, muitos pararam. As melhores músicas de Jair Rodrigues aconteceram nos 60 e 70, quando estava todo mundo fértil, compondo. Chegava ao Chico, dizia: "Meu irmão, preciso de um samba". Ele já tinha dentro da cabeça. Hoje não é mais assim.
Minha primeira idéia agora foi fazer um disco de músicas inéditas. Fui ao Martinho da Vila, ele me mandou uma. Fui ao Paulo César Pinheiro, me mandou música para um disco inteiro. Quando pedi para Caetano, Gilberto, Djavan, Peninha, Chico, Paulinho da Viola, não veio nada. Djavan disse que não tinha idéia no momento, mandou que eu olhasse num disco antigo dele.

Folha - Nos 60, eram todos artistas em busca de fama. Você cogita que hoje eles não queiram ter músicas suas gravadas por você?
Jair -
Não. Nunca, porque, poxa, gravei o primeiro samba de Gil, "Serenata em Teleco-Teco". Gravei uma das primeiras músicas de Chico, "Até Segunda-Feira".

Folha - Por que você saiu da Philips -que abrigou a maioria dos artistas brasileiros dos anos 60 e 70- em 85?
Jair -
Quando eu soube que Elis estava saindo da Philips (em 79), perguntei a ela por quê. Ela disse: "Olha, crioulo, é melhor você sair também porque ali não tem mais lugar para quem canta". Tanto é que saiu todo mundo.

Folha - Só ficou Caetano.
Jair -
André Midani, que era presidente da Philips, disse um dia que eu não estava mais gravando como antigamente, que dava impressão que eu estava gravando música de amigos, propôs uma reciclagem. Eu concordei, plenamente, mas ao mesmo tempo ficava chateado, porque tantas e tantas músicas que foram sucesso com outros artistas foram desviadas de mim. "Sufoco", por exemplo, foi para a Alcione, que eu apresentei a eles. O produtor Roberto Santana, da Bahia, era quem escolhia as músicas para os artistas. Os caras desviavam, não sobrava nada para mim.

Folha - A entrada na Trama, agora, é um renascimento?
Jair -
Não sei se chega a ser. Pensam que estou fora de mídia, mas estou sempre viajando para fora. A Trama me deu a oportunidade de fazer uma gravação ao vivo com boas condições técnicas, que eu queria havia muito tempo.

Folha - Qual é sua avaliação sobre o samba atual?
Jair -
Do pagode moderno, adoro o ritmo. A única coisa que não gosto são as letras. Também está faltando a rapaziada colocar mais cuíca, apito, reco-reco, tamborim. Colocam um pandeiro, um tantã e muito sintetizador, não gosto dessa sintetização. A melodia até que é boa, as letras é que são terríveis. Tem também o problema da produção. Para mim, o produtor deve ser músico. O cantor no estúdio corre o risco de desafinar, o produtor não pode deixar passar.


Show: Jair Rodrigues Onde: Crowne Plaza (r. Frei Caneca, 1.360, tel 0/xx/11/289-0985) Quando: hoje e amanhã, às 21h Quanto: R$ 15

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