São Paulo, Quarta-feira, 18 de Agosto de 1999
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MARCELO COELHO
Razões para não gostar de Dufy

A começar pelo próprio nome, delicado e breve, Raoul Dufy tem tudo para ser um mestre menor, uma aparição fugaz na história da pintura moderna. A exposição de Dufy, no MAM, não contraria esta impressão.
Aqueles quadros coloridos mostram uma vida ágil e feliz. Tudo é superfície e vibração, tudo é rapidinho, leve, agudo, prazeroso, como se o estereótipo do francês de boina e bigode, humorista e sutil, encontrasse sua tradução em obra de arte.
O resultado não é ruim, longe disso. Quantas cores! O azul nunca foi tão profundo como nessas telas. Mas tal felicidade virtuosística inspira pensamentos melancólicos. Tenho a impressão de que Dufy tomou a sério a famosa idéia de Stendhal, que afirmava ser a beleza "uma promessa de felicidade". O fato de a beleza ser uma promessa, não a felicidade plena, inspirou o modernismo, por um lado, e o kitsch, do lado oposto.
Pois o kitsch pretendeu envolver o espectador numa ilusão de felicidade pura. Já o modernismo investiu na fealdade, na distorção, no drama, como contraposto verista e extremado a uma "arte" ainda comprometida com o belo.
Entre o modernismo de Picasso e o kitsch dos cartões postais, podemos situar o impressionismo. Havia, claramente, uma intenção de beleza nas paisagens de Monet e nos retratos de Renoir: sentia-se a pulverização da luz, a instabilidade da perspectiva, os toques do pincel servindo ao mesmo tempo como avanço tecnológico e celebração da harmonia no mundo vivido.
A beleza, no impressionismo, surgia como "arte avançada". As muitas versões que a catedral de Ruão era capaz de assumir nas telas de Monet comprovavam uma verdade científica -a de que a luz tem cor- e simultaneamente celebravam, com dúbio, turvo prazer, o que há de efêmero em nossas visões.
É uma arte crepuscular e celebratória. Comemorou-se, no impressionismo, o progresso da civilização européia. Isto exigia tanto refinamento quanto autocrítica, tanto a percepção da instabilidade do instante quanto a alegria diante do fato de o instante ser passageiro -o que vale, afinal, como definição do prazer.
Com razão, Goethe marcou o momento da danação de Fausto quando ele viesse a pedir que o instante feliz se imobilizasse para sempre. Foi aí -justamente o momento em que Fausto contemplava trabalhadores numa grande obra urbana- que o demônio se regozijou vendo o herói descontente, tomado pela "ternura pelas coisas", que seria um dos pecados de Kant.
Essa ternura pelas coisas deveria ser reduzida a pó na estética moderna. A beleza do aparente foi objeto de crítica implacável. Ternura pelas coisas e, mais gravemente, ternura pela arte foram os pecados de Dufy.
Seu projeto técnico é claro: reintroduzir o desenho e a tinta preta no impressionismo. Há argumentos em favor desse propósito. Negando o negro e o risco, os impressionistas aboliam as certezas do mundo, optavam por um sonho transitório, irreal. Dufy achou-se capaz de incutir mais realismo e cérebro (isto é, desenho) na revolução impressionista.
O problema é que Dufy não era revolucionário, nem mesmo sarcástico e crítico como Toulouse-Lautrec, outro desenhista na pintura. A inquietação de Dufy expressa apenas o temor do burguês diante da revolução. Sua felicidade é postiça. Não que a felicidade impressionista fosse real. Mas eles percebiam, obscuramente, o quanto a verdade do instantâneo era também a denúncia do imediatismo moderno.
Dufy quis fazer a crítica do impressionismo, regrediu a Watteau e Fragonard.
Mas o esquematismo, a rapidez esquizóide desses mestres do século 18, funciona quase como símbolo de um mundo que terminava mal. O aspecto de anotação e de esboço que vemos nas pinturas de Fragonard contrasta com outra opção estética, mais coerente e burguesa, que é a de Chardin, fixada magicamente numa panela ou numa réstia de alho. Dignificar objetos domésticos foi a versão burguesa da mesma ternura de que eu estava falando acima: criou-se uma epopéia do objeto.
Dramatizar a aparência, como fizeram Watteau e Fragonard, serve como documento de época, mas Dufy não teve a sorte de anteceder a uma revolução.
Chagall tirou dos prazeres de Dufy o mecanismo da alegria perseguida. Delaunay descobriu e "brutalizou" o prazer que Dufy manifestava com mais elegância. Guignard fez de Dufy um álibi mineiro ou uma utopia mineira, não sabemos.
Há algo de frágil, de falsa promessa, nas pinturas de Dufy. Algo quebradiço.
Um argumento a favor de Dufy: ele entendeu que a arte moderna seria o exercício da mais pura liberdade. A rapidez de seu traço e a efusão de suas cores atestam a conquista estética obtida. Mas ele estava errado: modernismo sempre foi sinônimo de rigor, de novas regras contra as antigas. Paradoxalmente, numa época pós-moderna ele parece antiquado e ingênuo. Não admitimos a leveza de Dufy. Talvez seja um defeito nosso.


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