|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARIANO SUASSUNA
A Arte como recriação poética do real
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso
e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna
°°°°REGIÃO° E° TRADIÇÃO
No artigo que, em 1962, escrevi para o livro "Gilberto
Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte", reclamei contra
uma certa "indefinição de princípios" que marcava o Movimento
Regionalista. E procurava precisar minhas palavras:
"Tal indefinição, no que se refere ao nosso Regionalismo, tem-lhe valido certas críticas, às vezes
injustas, mas às vezes justas, principalmente no sentido de que é
um movimento que fica no pitoresco. Isto é devido, em primeiro
lugar, ao fato de que o nome muito geral de "regionalista" acolhe
também aqueles que ficam pelas
aparências da região, pintando
pescadores, esculpindo cambiteiros, escrevendo sobre cangaceiros
etc" (Ob. Cit., pág. 476).
Como se vê, era novamente
contra o neonaturalismo regionalista que eu reclamava. E prosseguia:
"Também considero um mero
acaso que minha região seja rica
dessas histórias coletivas, que me
interessam profundamente. Um
acaso afortunado, mas acaso. Minha inclinação é, portanto, coincidente com a da região, unicamente porque o material que aqui encontro satisfaz meu anseio de comunhão com o real, anseio possuído pelos Mestres que admiro e
que tento tropegamente imitar
(...). Acredito, assim, que, por
uma inclinação que me é natural e
que não forço, minhas peças reflitam o ambiente de minha região
ou, pelo menos, os aspectos desta
região que penso ver e que formam o cerne do que tenho a contar. Minha arte procura se alimentar dessa luz que parte do real e a
ele retornar, oferecendo uma resposta domada a sua solicitação
fascinante e feroz. Entretanto,
conforme já assinalei, reina certa
indefinição entre os regionalistas
a propósito das linhas que dirigem o movimento. E, quando o
próprio José Lins do Rego, falando sobre o grupo recifense, diz
que "a este regionalismo poderíamos chamar de orgânico", sinto-me mais à vontade para me incluir nele; ainda mais porque o
texto ensina, adiante, que ser de
sua região significa "ser-se mais
uma pessoa, uma criatura viva,
mais ligada à realidade", o que,
sem dúvida, se aproxima mais do
que procuro. Note-se, aliás, de
passagem, que Gilberto Freyre
também faz questão de distinguir
entre o artista que se serve da Arte
popular como fonte, superando-a, e o que fica no que ele chama de
"folclorismo", conforme se depreende da "Nota Bibliográfica" de
seu recente e monumental "Ordem e Progresso", no trecho a
propósito de Villa-Lobos" (pág.
478/479).
Falava eu, depois, nos sonhos
que, nas décadas anteriores, levavam Gilberto Freyre a "catar, à falta de um verdadeiro grande pintor, pelo menos vestígios dele em
obras que começavam a aparecer
no Nordeste e que não passavam
de tentativas, de esboços, em sua
maioria falhados e sem força". E
eu acrescentava ainda:
"Sonho que, com certas limitações, José Lins do Rego pôde provar não ser vão quanto ao romance. E Cícero Dias, também de certo modo, quanto à pintura. Porque, na minha opinião, só recentemente a pintura e o romance regionalistas alcançaram uma dimensão universal entre nós, através de dois grandes artistas-um
mineiro, Guimarães Rosa, e outro
pernambucano, Francisco Brennand (...). Aliás, falo assim pensando nos outros, não em mim.
Desde adolescente, desde menino
quase, desejei escrever criando
personagens intuídos a partir da
realidade que me cerca. Não considero essa a única posição válida.
Penso, por exemplo, em Henri
Rousseu, que pintava árvores, florestas e bichos tropicais que nunca tinha visto a não ser através de
gravuras (e fotografias), isso na
Paris impressionista do final do
século 19 e do começo do 20. Penso em Joseph Conrad, polonês ,
naturalizado inglês, recriando
com mão de mestre, como Gauguin, a realidade, os aventureiros,
os nativos e as paisagens dos mares do Sul. Posição que o próprio
Gilberto Freyre considera legítima, admitindo que a pessoa crie
para si o que ele chama "uma região espiritual", quando a sua não
entra em acordo com o mundo
interior do artista. Mas o fato é
que tal posição praticamente
identifica o regionalismo com
qualquer ato criador, pois só considera ilegítima a posição do artista que cria sua obra desencarnada
de qualquer tempo ou espaço, o
que -a se excluir, talvez, a música pura e a pintura abstrata- é
uma posição que só se admite teoricamente, para efeito de discussão" (pág. 480/481).
Aliás, refletindo hoje sobre minhas últimas palavras, noto que
tal visão gilbertiana chegaria a excluir da Arte a música pura e a
pintura abstrata; o que seria um
absurdo, pois ambas são válidas e
dotadas de tanta legitimidade
quanto a ópera e a pintura figurativa. Que uma pessoa goste mais
de uma que de outra é uma variação legítima de gosto (eu, por
exemplo, prefiro Bosch a Mondrian e Debussy a Wagner). O que
não se pode é dizer que a postura
de Mondrian ou de Wagner diante de suas respectivas artes é ilegítima. E eu continuava minhas reflexões de 1962 sobre o Regionalismo dizendo que, diante disso, o
Movimento voltava "a assumir
aquele caráter de comunhão com
a realidade, ora através da região
que cerca o artista -o que é a posição normal-, ora de outra, de
sua livre escolha. É por aí que ele
atinge seu aspecto mais profundo
e tanto mais simpático porquanto, no panorama da Arte contemporânea, é a forma mais vigorosa
de nos opormos a uma certa arte
desencarnada a que uma falsa
idéia de pureza nos quer obrigar".
(Continua na próxima semana.)
Texto Anterior: Senac lembra 50 anos do veículo no Brasil Próximo Texto: Memória: Caixa marca três décadas da morte de Jimi Hendrix Índice
|