São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 2000

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ARIANO SUASSUNA

A Arte como recriação poética do real

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

°°°°REGIÃO° E° TRADIÇÃO

No artigo que, em 1962, escrevi para o livro "Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte", reclamei contra uma certa "indefinição de princípios" que marcava o Movimento Regionalista. E procurava precisar minhas palavras:
"Tal indefinição, no que se refere ao nosso Regionalismo, tem-lhe valido certas críticas, às vezes injustas, mas às vezes justas, principalmente no sentido de que é um movimento que fica no pitoresco. Isto é devido, em primeiro lugar, ao fato de que o nome muito geral de "regionalista" acolhe também aqueles que ficam pelas aparências da região, pintando pescadores, esculpindo cambiteiros, escrevendo sobre cangaceiros etc" (Ob. Cit., pág. 476).
Como se vê, era novamente contra o neonaturalismo regionalista que eu reclamava. E prosseguia:
"Também considero um mero acaso que minha região seja rica dessas histórias coletivas, que me interessam profundamente. Um acaso afortunado, mas acaso. Minha inclinação é, portanto, coincidente com a da região, unicamente porque o material que aqui encontro satisfaz meu anseio de comunhão com o real, anseio possuído pelos Mestres que admiro e que tento tropegamente imitar (...). Acredito, assim, que, por uma inclinação que me é natural e que não forço, minhas peças reflitam o ambiente de minha região ou, pelo menos, os aspectos desta região que penso ver e que formam o cerne do que tenho a contar. Minha arte procura se alimentar dessa luz que parte do real e a ele retornar, oferecendo uma resposta domada a sua solicitação fascinante e feroz. Entretanto, conforme já assinalei, reina certa indefinição entre os regionalistas a propósito das linhas que dirigem o movimento. E, quando o próprio José Lins do Rego, falando sobre o grupo recifense, diz que "a este regionalismo poderíamos chamar de orgânico", sinto-me mais à vontade para me incluir nele; ainda mais porque o texto ensina, adiante, que ser de sua região significa "ser-se mais uma pessoa, uma criatura viva, mais ligada à realidade", o que, sem dúvida, se aproxima mais do que procuro. Note-se, aliás, de passagem, que Gilberto Freyre também faz questão de distinguir entre o artista que se serve da Arte popular como fonte, superando-a, e o que fica no que ele chama de "folclorismo", conforme se depreende da "Nota Bibliográfica" de seu recente e monumental "Ordem e Progresso", no trecho a propósito de Villa-Lobos" (pág. 478/479).
Falava eu, depois, nos sonhos que, nas décadas anteriores, levavam Gilberto Freyre a "catar, à falta de um verdadeiro grande pintor, pelo menos vestígios dele em obras que começavam a aparecer no Nordeste e que não passavam de tentativas, de esboços, em sua maioria falhados e sem força". E eu acrescentava ainda:
"Sonho que, com certas limitações, José Lins do Rego pôde provar não ser vão quanto ao romance. E Cícero Dias, também de certo modo, quanto à pintura. Porque, na minha opinião, só recentemente a pintura e o romance regionalistas alcançaram uma dimensão universal entre nós, através de dois grandes artistas-um mineiro, Guimarães Rosa, e outro pernambucano, Francisco Brennand (...). Aliás, falo assim pensando nos outros, não em mim. Desde adolescente, desde menino quase, desejei escrever criando personagens intuídos a partir da realidade que me cerca. Não considero essa a única posição válida. Penso, por exemplo, em Henri Rousseu, que pintava árvores, florestas e bichos tropicais que nunca tinha visto a não ser através de gravuras (e fotografias), isso na Paris impressionista do final do século 19 e do começo do 20. Penso em Joseph Conrad, polonês , naturalizado inglês, recriando com mão de mestre, como Gauguin, a realidade, os aventureiros, os nativos e as paisagens dos mares do Sul. Posição que o próprio Gilberto Freyre considera legítima, admitindo que a pessoa crie para si o que ele chama "uma região espiritual", quando a sua não entra em acordo com o mundo interior do artista. Mas o fato é que tal posição praticamente identifica o regionalismo com qualquer ato criador, pois só considera ilegítima a posição do artista que cria sua obra desencarnada de qualquer tempo ou espaço, o que -a se excluir, talvez, a música pura e a pintura abstrata- é uma posição que só se admite teoricamente, para efeito de discussão" (pág. 480/481).
Aliás, refletindo hoje sobre minhas últimas palavras, noto que tal visão gilbertiana chegaria a excluir da Arte a música pura e a pintura abstrata; o que seria um absurdo, pois ambas são válidas e dotadas de tanta legitimidade quanto a ópera e a pintura figurativa. Que uma pessoa goste mais de uma que de outra é uma variação legítima de gosto (eu, por exemplo, prefiro Bosch a Mondrian e Debussy a Wagner). O que não se pode é dizer que a postura de Mondrian ou de Wagner diante de suas respectivas artes é ilegítima. E eu continuava minhas reflexões de 1962 sobre o Regionalismo dizendo que, diante disso, o Movimento voltava "a assumir aquele caráter de comunhão com a realidade, ora através da região que cerca o artista -o que é a posição normal-, ora de outra, de sua livre escolha. É por aí que ele atinge seu aspecto mais profundo e tanto mais simpático porquanto, no panorama da Arte contemporânea, é a forma mais vigorosa de nos opormos a uma certa arte desencarnada a que uma falsa idéia de pureza nos quer obrigar".


(Continua na próxima semana.)


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