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CONTARDO CALLIGARIS
Schwarzenegger governador da Califórnia
Muitos californianos não
gostam de seu governador
atual e querem removê-lo. Conforme a lei de seu Estado, eles
apresentaram uma petição devidamente assinada por 12% dos
eleitores. Portanto haverá um novo pleito (eventualmente com um
atraso por razões técnicas).
Duas reflexões: uma sobre os
charmes da democracia direta e
outra sobre os comentários humorísticos ou indignados, pelo
mundo afora, contra a candidatura do ator Arnold Schwarzenegger ao governo da Califórnia.
Quem não gosta de um pouco
de democracia direta? Não seria
uma boa se os mandatos fossem
condicionais? Sem esperar as próximas eleições, a gente despediria
os representantes que não fazem
o que prometeram. Além disso,
seria ótimo, de vez em quando,
dispensar qualquer mediação e
legiferar por referendo.
É uma idéia simpática e perigosa. No caso, o atual governador
da Califórnia, Gray Davis, foi
eleito porque, em sua maioria, os
cidadãos da Califórnia gostavam
de seu programa. Mas, logo, os
mesmos cidadãos decidiram por
referendo que os impostos estaduais nunca aumentariam. Conclusão: Davis ficou de babaca,
com um programão e sem fundos
para realizá-lo.
Seria como se todos esperássemos que Marta Suplicy limpasse
São Paulo como se fosse uma mesa cirúrgica, mas pudéssemos decretar que não haveria imposto
para a coleta do lixo nem aumento do IPTU.
Há uma inegável sabedoria no
sistema representativo ordinário.
Por exemplo, ele leva em conta
nossa dificuldade crônica em pagar o preço de nossos desejos. Na
vida cotidiana, isso nos paralisa
(por exemplo: quero casar, mas
preciso de absolutamente todas as
gavetas da cômoda e detesto toalha molhada). Na vida política, a
coisa não é diferente.
Mas vamos a Schwarzenegger.
Entre os candidatos do Partido
Republicano (que não é minha
preferência no espectro político
americano), ele não é o pior: é liberal em matéria de costumes e
favorável ao aborto. Outro aspecto positivo: é um "self-made
man"; fez sozinho e do zero não
só sua fortuna mas também seu
corpo. Além disso, Schwarzenegger mostrou que ele pode ter
idéias erradas, mas, ao menos,
são as suas próprias. Casou-se
com uma Kennedy e não aderiu
ao Partido Democrata e às idéias
do clã de sua mulher.
Como nada indica que o ator
seja mais burro ou menos honesto
que os outros candidatos, por que
razão sua candidatura é objeto
universal de gozação?
Schwarzenegger não é um político. Isso deveria torná-lo mais
simpático. Em geral, nas democracias, os eleitores consideram os
políticos profissionais uma espécie daninha que prolifera no interstício entre os cidadãos e o
exercício do poder que deveria ser
deles.
Curiosamente, os mesmos cidadãos também menosprezam o homem comum que se candidata a
um ofício público. Ele é acusado,
no mínimo, de inexperiência: seu
mérito (de não ser um político
profissional) é transformado em
fraqueza. Paradoxal, não é?
Suspeito que a candidatura do
cidadão comum nos incomode
porque denuncia nosso absenteísmo. Insistimos na incompetência
do homem da rua que se candidata porque queremos justificar
nossa preguiça cívica.
Mas, no caso de Schwarzenegger, não se trata só disso. Há uma
outra condenação: "Logo um
ator! E de que filmes!". Alguns
acrescentam: "Outro?", evocando
Ronald Reagan (que também era
ator). Essa lembrança confirma o
preconceito. Afinal, quem diria:
"Um advogado não, já tivemos
Clinton"? Ou: "Um administrador de empresas não, já tivemos
Bush"?
A ambivalência em relação aos
atores é coisa antiga. Desde a aurora da modernidade, eles são esperados (enfim, alguém vem nos
divertir um pouco) e receados:
nômades e devassos, enchem de
sonhos perigosos as cabeças de
nossas crianças. Às vezes, aliás,
eles as levam consigo, como Mangiafuoco, o dono do circo de "Pinocchio". Conclusão: no fim do
século 19, em Manhattan, era
complicado achar uma igreja que
aceitasse enterrar os atores mortos em terra consagrada.
Claro, os atores nos enganam:
passam a vida fantasiados, encarnando personagens que pouco
têm a ver com quem eles são de
verdade. Mas será que nosso vizinho faz diferente quando desfila
com um carro emprestado como
se fosse dele?
Somos todos atores: o culto das
aparências é a chave que nos liberta do destino que nos seria reservado pelo passado e por nossas
castas de origem. O aprendizado
da vida social moderna é uma escola de recitação. Para confirmação, basta ler Balzac e Stendhal.
Se desprezamos os atores, é porque desprezamos a "mentira" de
nossas vidas.
Mas há mais: os atores vestem a
pele dos heróis de nossos sonhos.
Amamos os heróis. Por isso mesmo não toleramos que os atores
tenham vida própria, a não ser
que seja uma continuação de nossos devaneios. Vale tudo: amores,
divórcios, festas, doenças, bebedeiras e mesmo uma inusitada vida caseira. Única condição: que
seja mantida a aura da estrela e
do sonho.
Ora, o ato político, mais que
qualquer outro, nos lembra de
que há alguém atrás da máscara.
Lembra das pedras em Regina
Duarte quando ela apareceu na
propaganda de Serra? Não era
apenas animosidade partidária.
Era por ela ser atriz. A Viúva Porcina, namoradinha do Brasil, se
preocupa com governo e eleições?
É uma cidadã como a gente?
Schwarzenegger governador da
Califórnia? O exterminador do
futuro tomaria o poder, mas isso é
o de menos. O problema é que, se
Schwarzenegger se eleger governador, perderemos o exterminador.
ccalligari@uol.com.br
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