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CONTARDO CALLIGARIS
Al Qaeda conta com o pacifismo incondicional
Na quinta-feira passada, Suleiman Abou-Gheit,
porta-voz da organização terrorista Al Qaeda, declarou que,
"nas nações islâmicas, há milhares de jovens ansiosos por morrer,
enquanto os americanos estão
ansiosos por viver".
Se for assim, o terror ganhará a
guerra. Como os americanos e,
por extensão, nós, ocidentais, resistiríamos a um Exército que deseja sua própria morte, enquanto,
mesquinhos, queremos preservar
nossas vidas? Os que encararem a
morte com desenvoltura serão
mestres, os que preferirem minimizar os riscos serão escravos.
É certo que houve, vindos de várias nações islâmicas, muitos jovens ansiosos por morrer. No começo, pensamos que eles fossem
animados por uma fé absoluta
nas recompensas do além. O espírito crítico de nossa cultura nos
torna desconfiados e céticos. Por
contraste, a convicção maluca
dos assassinos era exótica e podia
nos parecer quase invejável, como
se fosse uma qualidade moral
perdida pela modernidade.
Essa explicação inicial encontrou um paradoxo: os pilotos assassinos não eram homens religiosos. A reconstituição de seus
últimos dias incluía bebida e clubes de "go-go girls". Com essa descoberta, a coisa ficou mais familiar. A força de uma fé absoluta
constituía para nós um mistério.
Mas sabemos do que é capaz o esforço para reprimir desejos que
são fortes dentro de nós e, apesar
disso, inaceitáveis. Conheci anos
atrás um jovem que, perseguido
por paixões masturbatórias proibidas, se automutilou. O vôo dos
pilotos assassinos podia ser algo
parecido: uma maneira de cortar
brutalmente seu próprio desejo de
"go-go girls", matando, com uma
cacetada só, o desejo (ou seja, a si
mesmos) e as "go-go girls".
Em suma, milhares (?) de jovens
querem morrer matando outros
que querem viver e que bebem e
se permitem "go-go girls". Para os
assassinos suicidas, a matança é
um remédio contra sua própria
vontade de ser como aqueles que
querem viver -vontade de álcool
e de "go-go girls". A fé seria uma
racionalização. A repressão seria
a verdadeira motivação.
Apareceu mais um elemento
para explicar a determinação dos
terroristas. Na última semana,
três mulheres (duas delas americanas) me confessaram que, ao
assistirem às falas de Osama bin
Laden, sentiram-se atraídas quase fisicamente sem saber por que
característica. Nos jornais, as fotografias de paquistaneses e de
palestinos acariciando a imagem
do terrorista não dizem outra coisa: independentemente de seus
planos geopolíticos (obscuros),
Osama bin Laden fascina e seduz.
Como? Prometendo uma morte
bela. Aliás, é sempre com essa
promessa que o terror e os fascismos recrutam: quem morrer por
nós e conosco morrerá bonito. As
elites quase sempre tentam convencer seus oprimidos de que a
miséria é bonita (o Brasil conhece
bem essa tática). Ora, o rebento
mais famoso da elite saudita melhorou o esquema: achou o jeito
de acalmar os oprimidos do islã,
prometendo-lhes que sua morte
seria bonita. A morte é o mestre
absoluto, que ganha de nós todos
-sempre. Morrer é a prova de
nossos limites. Desagradável, não
é? Bom, transformar nossa morte
numa apoteose narcisista, numa
imagem de grande beleza, é o melhor jeito de negar nossos limites.
A nossa morte será o próprio monumento que nos eternizará. Era
isso que podia animar os pilotos
suicidas e assassinos na hora do
impacto: uma imagem de si mesmos enaltecida pelo sacrifício e
pelo horror. Lá vou eu, triunfando na morte. Bin Laden seduz por
ser um maquiador de cadáveres.
Com isso, a determinação dos
terroristas dilui-se num meandro
de conflitos psíquicos banais.
Mesmo assim, nossa chance de
resistir aos apóstolos da morte seria pequena, se fosse verdade que
nós e nossos jovens queremos apenas viver. Se garantir nossa sobrevivência for a razão principal de
nossa existência, então não haverá como resistir ao terror. Quem
quer viver a qualquer custo nunca levanta para lutar. Será que
Abou-Gheit tem razão?
É o que me parece quando ouço,
nestes dias, a insistência de um
discurso pacifista incondicional,
que simplesmente pede que ninguém mais seja morto ou ferido.
Tudo é aceitável em troca da sobrevivência: baixem as armas,
não quero nem saber o porquê da
briga, só tomo posição em favor
da vida e não respondo à pergunta: "Qual vida?". É um discurso
coerente com um traço marcante
da cultura contemporânea, segundo o qual o culto ao corpo e à
saúde parecem valer como única
ética coletiva.
Em contraponto, os passageiros
do quarto avião sequestrado no
11 de setembro, quando souberam
do destino dos outros aviões, rebelaram-se. Um deles falou no celular com sua mulher, a qual lhe
sugeriu que ficasse calmo e, quem
sabe, assim salvasse a pele. Antes
de desligar e passar à ação, ele
disse: "Algo precisa ser feito".
Talvez Abou-Gheit esteja errado em seu entendimento da modernidade ocidental. É verdade
que, para nós, a vida é um valor, e
a morte nunca nos parece bela.
Mas também é verdade que essa
"consciência" não nos torna todos necessariamente covardes.
ccalligari@uol.com.br
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