São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 2006

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"Contar uma só história é pouco", diz Cunningham

Autor de "As Horas", que acaba de lançar "Dias Exemplares" no Brasil, diz à Folha que EUA deveriam buscar apoio em vez de levar à frente guerra "imoral"

O contexto pós-11 de Setembro inspirou autor a confrontar Nova York em três momentos distintos e a questionar governo dos EUA


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Michael Cunningham, 53, não se contenta em viver e criar apenas em um tempo. Em "As Horas" (1998), livro que levou um Pulitzer e foi às telas pelas mãos de Stephen Daldry, ele passou por três. O escritor contava uma história de depressão feminina que atravessava as vidas de uma escritora (Virginia Woolf) dos anos 20, uma dona-de-casa de Los Angeles da década de 50 e uma nova-iorquina no início do século 21.
Agora, em "Dias Exemplares", seu mais recente romance lançado no Brasil, o autor usa o mesmo formato para contar três histórias diferentes que tratam de homens, máquinas e sobrenatural, tendo Nova York como referência.
O primeiro capítulo narra o dia-a-dia de um garoto que cresce na cidade durante sua industrialização, em 1860, e que se vê, aos 12 anos, já empregado como operário numa fábrica. O segundo se passa em 2001 e relata os dias de uma policial designada a atender chamados de potenciais terroristas, numa central de atendimento ao público, após se dar conta de que falhou ao tentar conter um menino-bomba. Encerra o romance uma crônica futurista sobre um robô com sentimentos numa Nova York de uma era pós-nuclear.
"Dias Exemplares" começa romance histórico e termina ficção científica. À Folha, o escritor contou como fez essa viagem no tempo, sem sair da Nova York em que vive.

 

FOLHA - O protagonista da primeira história acha que as máquinas da fábrica em que trabalha são instrumentos de Deus ou dos mortos. A segunda fala de bombas e telefones. E, na terceira, temos um robô. Por que as máquinas, o sobrenatural e o religioso estão tão relacionados?
CUNNINGHAM -
Vivemos numa era tecnológica, e ainda que não saibamos o que o futuro irá nos trazer, é seguro apostar na idéia de que -admitindo que o planeta sobreviva- veremos os avanços tecnológicos se espalharem para além de qualquer limite que imaginemos. Sou fascinado pela idéia de que isso é inevitável e que pode borrar a linha entre o que é humano (e, por implicação, espiritual) e o que é mecânico. O que vamos sentir quando formos clonados? E quando surgir um computador que pode criar? De alguma forma, "Dias Exemplares" toca nessas questões.

FOLHA - A segunda parte, "A Cruzada das Crianças", trata do terrorismo. Como você se posiciona politicamente sobre o tema?
CUNNINGHAM -
O governo norte-americano está obcecado com o terrorismo, e sua chamada "guerra ao terror" logo ameaçará destruir todo o mundo. Os personagens desse capítulo são parte de uma história muito maior e mais complicada, a da tentativa equivocada dos EUA de lidar com um ataque terrorista de grande escala. Fico horrorizado pela idéia de que o governo usa a tragédia do 11 de Setembro não como modo de angariar empatia pelo resto do mundo, mas como justificativa para empreender uma guerra fútil e imoral.

FOLHA - Você já havia costurado histórias em diferentes períodos do tempo em "As Horas". Agora, em "Dias Exemplares", você está usando o mesmo formato. Por quê?
CUNNINGHAM -
O mundo ficou tão grande e variado que contar apenas uma história me parece insuficiente. É claro que contar cem histórias pouco muda isso, mas imagino que, quanto mais um romance puder abarcar, melhor. Dada a cada vez maior interdependência de eventos históricos uns sobre os outros, me sinto compelido a escrever romances que conectem momentos e pessoas diferentes ao longo do tempo.

FOLHA - Em "As Horas", você tinha uma referência literária forte, Virginia Woolf (1882-1941). Agora é a vez do poeta Walt Whitman (1819-1892). Por que esses autores?
CUNNINGHAM -
Woolf e Whitman são importantes para mim, e um escritor deve sempre escrever sobre o que mais lhe importa. Além disso, gosto da idéia de que, com a visibilidade que tenho, posso lembrar os leitores de hoje de que Woolf e Whitman são tão revolucionários e relevantes agora quanto jamais foram no passado.

FOLHA - O capítulo "Como a Beleza" lembra o romance "Eu, Robô", de Isaac Asimov. Há relação?
CUNNINGHAM -
Li Asimov, mas também me interesso por outros autores de ficção científica, como Ursula K. Le Guin, Samuel Delany, William Gibson. Mas o meu favorito ainda é o polonês Stanislaw Lem [autor de "Solaris", adaptado ao cinema por Andrei Tarkovsky].

FOLHA - Você faz um alerta a quem possa criticá-lo por faltar com rigor histórico. Qual sua opinião sobre romances históricos?
CUNNINGHAM -
Livros que se apresentam como históricos devem ser precisos, e os que se dizem romances podem brincar com os fatos, mas sempre com o interesse voltado a uma grande verdade do autor. Incluí o alerta simplesmente porque nós, nos EUA, vivemos hoje numa atmosfera de constante mentira da parte de políticos, corporações, imprensa etc. Parece ser um bom momento para lembrar que é preciso se posicionar diante da verdade.


DIAS EXEMPLARES
Autor:
Michael Cunningham
Editora: Companhia das Letras
Tradução: José Geraldo Couto
Quanto: R$ 53 (407 págs.)


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