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"Contar uma só história é pouco", diz Cunningham
Autor de "As Horas", que acaba de lançar "Dias Exemplares" no Brasil, diz à Folha que EUA deveriam buscar apoio em vez de levar à frente guerra "imoral"
O contexto pós-11 de Setembro inspirou autor a confrontar Nova York em três momentos distintos e a questionar governo dos EUA
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Michael Cunningham, 53,
não se contenta em viver e criar
apenas em um tempo. Em "As
Horas" (1998), livro que levou
um Pulitzer e foi às telas pelas
mãos de Stephen Daldry, ele
passou por três. O escritor contava uma história de depressão
feminina que atravessava as vidas de uma escritora (Virginia
Woolf) dos anos 20, uma dona-de-casa de Los Angeles da década de 50 e uma nova-iorquina
no início do século 21.
Agora, em "Dias Exemplares", seu mais recente romance
lançado no Brasil, o autor usa o
mesmo formato para contar
três histórias diferentes que
tratam de homens, máquinas e
sobrenatural, tendo Nova York
como referência.
O primeiro capítulo narra o
dia-a-dia de um garoto que
cresce na cidade durante sua
industrialização, em 1860, e
que se vê, aos 12 anos, já empregado como operário numa fábrica. O segundo se passa em
2001 e relata os dias de uma policial designada a atender chamados de potenciais terroristas, numa central de atendimento ao público, após se dar
conta de que falhou ao tentar
conter um menino-bomba. Encerra o romance uma crônica
futurista sobre um robô com
sentimentos numa Nova York
de uma era pós-nuclear.
"Dias Exemplares" começa
romance histórico e termina
ficção científica. À Folha, o escritor contou como fez essa
viagem no tempo, sem sair da
Nova York em que vive.
FOLHA - O protagonista da primeira história acha que as máquinas da
fábrica em que trabalha são instrumentos de Deus ou dos mortos. A
segunda fala de bombas e telefones. E, na terceira, temos um robô.
Por que as máquinas, o sobrenatural
e o religioso estão tão relacionados?
CUNNINGHAM - Vivemos numa
era tecnológica, e ainda que não
saibamos o que o futuro irá nos
trazer, é seguro apostar na idéia
de que -admitindo que o planeta sobreviva- veremos os
avanços tecnológicos se espalharem para além de qualquer
limite que imaginemos.
Sou fascinado pela idéia de
que isso é inevitável e que pode
borrar a linha entre o que é humano (e, por implicação, espiritual) e o que é mecânico. O que
vamos sentir quando formos
clonados? E quando surgir um
computador que pode criar? De
alguma forma, "Dias Exemplares" toca nessas questões.
FOLHA - A segunda parte, "A Cruzada das Crianças", trata do terrorismo. Como você se posiciona politicamente sobre o tema?
CUNNINGHAM - O governo norte-americano está obcecado
com o terrorismo, e sua chamada "guerra ao terror" logo
ameaçará destruir todo o mundo. Os personagens desse capítulo são parte de uma história
muito maior e mais complicada, a da tentativa equivocada
dos EUA de lidar com um ataque terrorista de grande escala.
Fico horrorizado pela idéia
de que o governo usa a tragédia
do 11 de Setembro não como
modo de angariar empatia pelo
resto do mundo, mas como justificativa para empreender
uma guerra fútil e imoral.
FOLHA - Você já havia costurado
histórias em diferentes períodos do
tempo em "As Horas". Agora, em
"Dias Exemplares", você está usando o mesmo formato. Por quê?
CUNNINGHAM - O mundo ficou
tão grande e variado que contar
apenas uma história me parece
insuficiente. É claro que contar
cem histórias pouco muda isso,
mas imagino que, quanto mais
um romance puder abarcar,
melhor. Dada a cada vez maior
interdependência de eventos
históricos uns sobre os outros,
me sinto compelido a escrever
romances que conectem momentos e pessoas diferentes ao
longo do tempo.
FOLHA - Em "As Horas", você tinha
uma referência literária forte, Virginia Woolf (1882-1941). Agora é a
vez do poeta Walt Whitman (1819-1892). Por que esses autores?
CUNNINGHAM - Woolf e Whitman são importantes para
mim, e um escritor deve sempre escrever sobre o que mais
lhe importa. Além disso, gosto
da idéia de que, com a visibilidade que tenho, posso lembrar
os leitores de hoje de que Woolf
e Whitman são tão revolucionários e relevantes agora quanto jamais foram no passado.
FOLHA - O capítulo "Como a Beleza" lembra o romance "Eu, Robô",
de Isaac Asimov. Há relação?
CUNNINGHAM - Li Asimov, mas
também me interesso por outros autores de ficção científica,
como Ursula K. Le Guin, Samuel Delany, William Gibson.
Mas o meu favorito ainda é o
polonês Stanislaw Lem [autor
de "Solaris", adaptado ao cinema por Andrei Tarkovsky].
FOLHA - Você faz um alerta a quem
possa criticá-lo por faltar com rigor
histórico. Qual sua opinião sobre romances históricos?
CUNNINGHAM - Livros que se
apresentam como históricos
devem ser precisos, e os que se
dizem romances podem brincar com os fatos, mas sempre
com o interesse voltado a uma
grande verdade do autor. Incluí
o alerta simplesmente porque
nós, nos EUA, vivemos hoje numa atmosfera de constante
mentira da parte de políticos,
corporações, imprensa etc. Parece ser um bom momento para lembrar que é preciso se posicionar diante da verdade.
DIAS EXEMPLARES
Autor: Michael Cunningham
Editora: Companhia das Letras
Tradução: José Geraldo Couto
Quanto: R$ 53 (407 págs.)
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