São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O regresso da besta

Se um governo moderado não se preocupa com os imoderados, os extremistas irão tratar do assunto

ATERRO EM Londres no meio de uma tempestade. Não falo do clima (também). Falo do ambiente político, com Jack Straw, líder da Câmara dos Comuns, a escrever artigo incendiário nos jornais. Para Straw, um crítico insuspeito de Bush e dos "cartoons" da Dinamarca (lembram?), seria importante que as mulheres muçulmanas que usam véu destapassem o rosto quando falam oficialmente com ele. Straw não é tarado. É prudente. Para Straw, o uso do véu dificulta o diálogo, contribui para o isolamento de uma comunidade e transforma a Grã-Bretanha numa perigosa agregação de estranhos.
Ruth Kelly, ministra do governo Blair, também entrou na dança. Para Kelly, é importante que as autoridades locais estejam atentas a fenômenos de extremismo religioso -nas escolas, nos bairros, nas universidades- informando as forças policiais. Raciocínio de Kelly: se um governo moderado não se preocupa com os imoderados, os partidos extremistas tratarão do assunto.
As declarações de Straw e Kelly despertaram o coro do costume. O governo é racista. O governo não valoriza a diversidade. O governo limita-se a demonizar uma fé, como antigamente se demonizava uma raça. As acusações são interessantes (do ponto de vista cômico, claro), mas são insuficientes para lidar com a evidência: sim, o islamismo cresce na Europa; sim, a retórica multicultural é insuficiente para proteger as democracias liberais; e, sim, a extrema direita não está a desaparecer do mapa. Pelo contrário: de votação em votação, ela cresce em toda a parte.
Cresce na Alemanha, o berço da besta, onde o Partido Nacional Democrático obteve 7,4% dos votos em eleições regionais. A ambição, agora, são as eleições gerais de 2009, à imagem do que sucede na vizinha Áustria, onde os extremistas já partilham 15% das intenções de voto.
Cresce também no Leste, onde a extrema direita grega, romena, sérvia e búlgara, ao destilar ódio à União Européia e a qualquer raça que não seja culturalmente pura, avança nas eleições locais e promete entendimentos e coalizações para as eleições nacionais.
E, se dúvidas houvesse sobre a sobrevivência de Le Pen, o espetáculo dos carros incendiados nos subúrbios de Paris e a incapacidade de Chirac para "integrar" imigrantes magrebinos chega e sobra para deixar uma certeza: em maio de 2007, Le Pen estará no segundo turno das presidenciais francesas.
Naturalmente que os partidos de extrema direita crescem por motivos vários: uma relativa estagnação econômica no espaço europeu; nostalgias ideológicas passadas, que palpitam nas gerações mais velhas; e o medo arcaico perante o outro, sobretudo se o outro fala língua estranha e "rouba" emprego escasso. Mas existe uma plataforma comum que os une: a velha xenofobia, agravada por problemas sociais e culturais que a imigração maciça trouxe para a Europa -e que os "partidos do centro", algemados pelo politicamente correto, são incapazes de enfrentar, muito menos resolver.
Fazer de conta que a realidade não existe pode alegrar os simples. Mas será a receita para engordar a besta.


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