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MARCELO COELHO
Uma Bienal diferente
O que era entrevisto pelas rachaduras de um sistema em crise hoje adquire voz própria
É COMUM ficar atônito diante
da Bienal, e nem sempre a
culpa é exclusivamente nossa. Basta ver uma exposição finalmente bem cuidada, com propósito
definido, como esta 27ª edição do
evento, para perceber como foram
caóticas, melancólicas e difíceis de
apreciar as bienais anteriores.
Desta vez, por exemplo, há pequenos textos explicativos ao lado de cada obra exibida. Parece incrível, mas
não era assim antigamente. A mostra ganhou muito ao ter uma só curadora, a crítica de arte Lisette Lagnado. Pela primeira vez, eliminaram-se as chamadas "representações nacionais", em que estandes de
um sem-número de países, com artistas escolhidos sabe-se lá por quais
critérios burocráticos, baixavam como ETs no pavilhão do Ibirapuera.
É assim que um tema geral, escolhido pela curadora -"como viver
junto"-, oferece ao espectador uma
chave interpretativa para apreciar
cada obra individualmente e também para apreciar o conjunto da exposição.
No andar térreo, tomamos contato principalmente com artistas que
denunciam a segregação, o apartheid social, o isolamento que toma
conta dos mais variados centros urbanos do planeta. Diga-se que é o andar mais chato e pesadamente óbvio
da exposição.
Logo na entrada (felizmente gratuita, apesar da quantidade de seguranças em estado de prontidão), o
visitante se depara com um jardim
de grama artificial, cercado de grades e arames farpados, onde a sul-africana Jane Alexander colocou
uma de suas esculturas híbridas de
bicho e homem; ao menos para os
paulistanos, acostumados a condomínios fechados, a mensagem peca
pela obviedade.
Oito círculos de arame farpado na
parede, o vídeo de uma performance
com um falso Ronald McDonald bagunçando a lanchonete e a maquete
reconstruindo um edifício bombardeado em Beirute reiteram a mesma
intenção crítica, mas tendem a acentuar a resignação do espectador, que
se pergunta quantos quilômetros de
tédio ainda virão pela frente.
Duas obras um tanto chatas em si
mesmas - a chuva de guarda-chuvas pendurados por Marepe e a pirâmide de bolhas infláveis do argentino Tomás Saraceno- conduzem,
entretanto, aos andares superiores
da mostra, onde o tema da separação, do isolamento e do confronto
serão substituídos pelas muitas surpresas a que convida a idéia do "como viver junto". As relações entre
homem e natureza, entre diversas
tradições culturais, entre arte erudita e popular, entre indústria e artesanato são abordadas nas obras de
diversos artistas, sem cair em abstrações conceituais.
Estacionadas num canto, estão as
maravilhosas bicicletas "retrabalhadas" pelo artesanato em palha de
Jarbas Lopes. O artista-seringueiro
Hélio Melo ocupa uma sala inteira,
onde a fantasia "naïf" convive com o
desenho sutil de cenas da mata; é
uma das presenças mais marcantes
desta Bienal.
Das fotos mostrando africanos
que têm chacais como bichos de estimação aos maravilhosos exemplos
de arte popular do recorte em papel,
recolhidos na cidade chinesa de
Yanchuan, os exemplos de convivência com o arcaico, com o primitivo, com o folclórico e o popular não
cessam. Tudo isso foi experimentado pelo modernismo; de certa forma, procurava-se uma realidade
"mais verdadeira" e perturbadora,
surgindo entre as brechas de uma
cultura européia que se via em crise.
A diferença, agora, é que o estranho, o exótico e o popular não são
mais evocados de longe, como um
fator de desestabilização, por artistas que viviam no centro supostamente civilizado do planeta. O que
era obscuramente entrevisto pelas
rachaduras de um sistema em crise
hoje adquire voz própria. Atualmente, a civilização depende da capacidade que se tenha de ouvir e entender "o outro", não de fechar-se em
resistência armada ao que a cerca.
Dito assim, tudo fica banal e politicamente correto. A 27ª Bienal não
seria o que é sem a presença de
ONGs de todas as partes do mundo.
Mas não é uma Bienal politicamente
correta; é uma Bienal bonita.
As pinturas de Hélio Melo, por
exemplo, podem ser pretexto para
interpretações moralizantes a respeito da Amazônia. Nada contra;
mas elas estão ali, em sua coerência
de cores e recursos, em sua delicadeza sombria e feliz, porque não se reduzem a um conceito qualquer. Estão ali porque são arte.
Faz tempo que pairava, nas bienais, a dúvida sobre se tudo aquilo
"era arte" ou "não era". Desta vez, finalmente, a maior parte das obras
expostas nos livra dessa questão.
coelhofsp@uol.com.br
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