São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 2006

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MARCELO COELHO

Uma Bienal diferente

O que era entrevisto pelas rachaduras de um sistema em crise hoje adquire voz própria

É COMUM ficar atônito diante da Bienal, e nem sempre a culpa é exclusivamente nossa. Basta ver uma exposição finalmente bem cuidada, com propósito definido, como esta 27ª edição do evento, para perceber como foram caóticas, melancólicas e difíceis de apreciar as bienais anteriores.
Desta vez, por exemplo, há pequenos textos explicativos ao lado de cada obra exibida. Parece incrível, mas não era assim antigamente. A mostra ganhou muito ao ter uma só curadora, a crítica de arte Lisette Lagnado. Pela primeira vez, eliminaram-se as chamadas "representações nacionais", em que estandes de um sem-número de países, com artistas escolhidos sabe-se lá por quais critérios burocráticos, baixavam como ETs no pavilhão do Ibirapuera.
É assim que um tema geral, escolhido pela curadora -"como viver junto"-, oferece ao espectador uma chave interpretativa para apreciar cada obra individualmente e também para apreciar o conjunto da exposição. No andar térreo, tomamos contato principalmente com artistas que denunciam a segregação, o apartheid social, o isolamento que toma conta dos mais variados centros urbanos do planeta. Diga-se que é o andar mais chato e pesadamente óbvio da exposição.
Logo na entrada (felizmente gratuita, apesar da quantidade de seguranças em estado de prontidão), o visitante se depara com um jardim de grama artificial, cercado de grades e arames farpados, onde a sul-africana Jane Alexander colocou uma de suas esculturas híbridas de bicho e homem; ao menos para os paulistanos, acostumados a condomínios fechados, a mensagem peca pela obviedade.
Oito círculos de arame farpado na parede, o vídeo de uma performance com um falso Ronald McDonald bagunçando a lanchonete e a maquete reconstruindo um edifício bombardeado em Beirute reiteram a mesma intenção crítica, mas tendem a acentuar a resignação do espectador, que se pergunta quantos quilômetros de tédio ainda virão pela frente.
Duas obras um tanto chatas em si mesmas - a chuva de guarda-chuvas pendurados por Marepe e a pirâmide de bolhas infláveis do argentino Tomás Saraceno- conduzem, entretanto, aos andares superiores da mostra, onde o tema da separação, do isolamento e do confronto serão substituídos pelas muitas surpresas a que convida a idéia do "como viver junto". As relações entre homem e natureza, entre diversas tradições culturais, entre arte erudita e popular, entre indústria e artesanato são abordadas nas obras de diversos artistas, sem cair em abstrações conceituais.
Estacionadas num canto, estão as maravilhosas bicicletas "retrabalhadas" pelo artesanato em palha de Jarbas Lopes. O artista-seringueiro Hélio Melo ocupa uma sala inteira, onde a fantasia "naïf" convive com o desenho sutil de cenas da mata; é uma das presenças mais marcantes desta Bienal.
Das fotos mostrando africanos que têm chacais como bichos de estimação aos maravilhosos exemplos de arte popular do recorte em papel, recolhidos na cidade chinesa de Yanchuan, os exemplos de convivência com o arcaico, com o primitivo, com o folclórico e o popular não cessam. Tudo isso foi experimentado pelo modernismo; de certa forma, procurava-se uma realidade "mais verdadeira" e perturbadora, surgindo entre as brechas de uma cultura européia que se via em crise.
A diferença, agora, é que o estranho, o exótico e o popular não são mais evocados de longe, como um fator de desestabilização, por artistas que viviam no centro supostamente civilizado do planeta. O que era obscuramente entrevisto pelas rachaduras de um sistema em crise hoje adquire voz própria. Atualmente, a civilização depende da capacidade que se tenha de ouvir e entender "o outro", não de fechar-se em resistência armada ao que a cerca.
Dito assim, tudo fica banal e politicamente correto. A 27ª Bienal não seria o que é sem a presença de ONGs de todas as partes do mundo.
Mas não é uma Bienal politicamente correta; é uma Bienal bonita.
As pinturas de Hélio Melo, por exemplo, podem ser pretexto para interpretações moralizantes a respeito da Amazônia. Nada contra; mas elas estão ali, em sua coerência de cores e recursos, em sua delicadeza sombria e feliz, porque não se reduzem a um conceito qualquer. Estão ali porque são arte.
Faz tempo que pairava, nas bienais, a dúvida sobre se tudo aquilo "era arte" ou "não era". Desta vez, finalmente, a maior parte das obras expostas nos livra dessa questão.


coelhofsp@uol.com.br

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