São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2008

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ANTONIO CICERO

A educação da polícia


Não se pode dizer que têm plena vigência, no Brasil, os direitos humanos e a democracia

RECENTEMENTE UM amigo meu, professor de filosofia, ficou chocado ao passar em frente ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ). É que, tentando entender qual era o objeto contra o qual protestavam os estudantes que haviam por lá armado uma barricada, ele percebeu um cartaz que continha a palavra "Kant" seguida de um sinal de igualdade, seguido de uma cruz suástica: em suma, "Kant é igual ao nazismo".
"Que estudantes são esses", questionava, "que associam ao nazismo justamente o maior filósofo do iluminismo, aquele que mostrou que o fim último do direito é a liberdade e que afirmava não haver nada neste mundo que não possa ser objeto de crítica?".
Concordando que a cena por ele descrita era absurda -embora talvez não estivesse inteiramente deslocada em certos círculos universitários, digamos "pós-modernos"- resolvi, intrigado, fazer uma sumária pesquisa sobre esse assunto na internet. Logo verifiquei que estávamos equivocados em relação aos estudantes. Não é o filósofo alemão Immanuel Kant, mas o antropólogo brasileiro Roberto Kant de Lima que eles acusam de nazismo ou totalitarismo. Ora, ocorre que conheço suficientemente o trabalho também deste Kant para poder afirmar que, de todo modo, os estudantes em questão estão errados.
De fato, tive oportunidade de ler, algum tempo atrás, dois livros originais e estimulantes desse notável antropólogo. O primeiro é o resultado do fato de que Roberto Kant aproveitou a ocasião em que fazia o seu doutorado, em Harvard, para observar a comunidade acadêmica americana com o olhar de um antropólogo a efetuar seu trabalho de campo. Isso lhe permitiu apreender de maneiras surpreendentes algumas notáveis características tanto da sociedade americana quanto, por comparação, da brasileira. Refiro-me a "A Antropologia da Academia: Quando os Índios Somos Nós".
No outro livro dele que li, "A Polícia da Cidade do Rio de Janeiro: Seus Dilemas e Paradoxos", Roberto Kant consegue, a partir do exame da questão de segurança pública no Rio, revelar os mecanismos particulares por meio dos quais no Brasil, de maneira geral, "uma ordem constitucional igualitária é aplicada de uma maneira hierárquica pelo sistema judicial". As práticas policiais discricionárias são, como ele mostra, parte de um sistema judicial oficial que opera tradicionalmente por meio de "malhas" que particularizam, em todos os níveis do sistema judiciário, a aplicação das leis universais. No nível da polícia, essas "malhas" se manifestam como certos padrões tradicionais de atitude e comportamento -certo ethos- que, a despeito de uma legislação universalista e moderna, perpetuam em grande medida as desigualdades particularistas herdadas do Brasil pré-moderno, tradicional, hierárquico, escravagista.
Forçoso é reconhecer que, sem a eliminação dessas práticas anacrônicas, não se pode dizer que tenham plena vigência, no Brasil, nem os direitos humanos nem a democracia. Essa verdade foi há pouco dramaticamente reafirmada pela descoberta do erro judiciário que consistiu na prisão e na condenação de três rapazes pobres que, para escapar da brutal tortura a que foram submetidos numa delegacia policial de São Paulo, haviam confessado um crime que não cometeram.
Existe portanto, segundo Roberto Kant, uma situação esquizofrênica: por um lado, uma prática policial cuja teoria implícita é antimoderna, antiuniversalista e discriminatória; e, por outro lado, uma teoria moderna, universalista e igualitária, que se encontra por exemplo na nossa Constituição, mas que não é posta em prática. Foi na tentativa de contribuir para corrigir essa monstruosidade que ele não só criou e coordena um respeitado curso de especialização em segurança pública, como também elaborou um exemplar projeto de curso superior de bacharelado em segurança pública e social. "Urge", diz ele, com razão, "instituir, no âmbito da universidade pública, gratuita e de qualidade, a produção e reprodução de um campo de conhecimento que propicie a transformação da inflexão estatal da segurança pública para o viés do cidadão e da sociedade".
Pois bem, foi ao tentar abrir tal curso na UFF que Roberto Kant provocou a ira do pequeno, porém ruidoso, grupo de estudantes do ICHF que o acusam de nazismo. Será que se consideram revolucionários quando se opõem à luta contra o que há de pior e de mais retrógrado no Brasil?


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